• “A tecnologia pode deixar a medicina mais humana”, diz Mariana Perroni, diretora de Inovação e Saúde Digital do Oswaldo Cruz

    A médica intensivista Mariana Perroni
    Jose Renato Junior | 22 jul 2021

    Mariana Perroni é uma porta-voz da integração da tecnologia com a saúde. Ela é médica intensivista, mas em suas palestras fala de inteligência artificial (IA), aprendizado de máquina e outros conceitos cada vez mais aplicados na medicina. 

    Fã da ciência de dados, defende que faculdades se adequem o quanto antes à nova realidade do mercado, em que profissionais de saúde são bombardeados com cada vez mais informação – e que, por isso, precisam de ferramentas para lidar com isso.

    Como a primeira médica da América Latina no Watson Health, da IBM, trabalhou por mais de quatro anos ao lado de, segundo ela, “as mentes mais brilhantes da tecnologia”. O projeto é o audacioso braço de soluções de IA da multinacional para assistência em saúde – mas que, de acordo com rumores que surgiram no começo de 2021, seria vendido por não dar lucro e, apontam os críticos, pecava ao focar em grandes ambições, como o combate ao câncer, em vez de buscar soluções mais acessíveis, como gestão hospitalar.

    No fim do ano passado, ela assumiu uma nova função no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, em que pretende colocar em prática essa gestão de saúde em que a tecnologia tem mais destaque – e soluções.

    Uma dessas inovações é a Fabrik, plataforma em que os próprios funcionários criam, divulgam e discutem ideias e ações para o hospital. É uma espécie de mistura de caixinha de sugestões com rede social. Confira abaixo a entrevista que ela deu a Future Health.

    O Hospital Oswaldo Cruz criou uma área nova, a diretoria de Inovação Médica. O que isso significa para o hospital e, especialmente, para você?
    Uma correção: é “Diretoria de Inovação e Saúde Digital”. É um passo esperado e necessário na realidade de um dos mais respeitados complexos hospitalares da América Latina, conhecido pela tradição inovadora e cujo lema é Immer Besser, alemão para “fazer sempre melhor”. 

    Fazer sempre melhor na saúde envolve criar experiências de cuidados mais alinhadas às expectativas e necessidades tanto dos pacientes quanto dos profissionais de saúde do século 21. 

    E é justamente essa a missão que definimos para a área. Fazemos isso por meio de projetos inovadores que visam impactar positivamente o ecossistema da saúde. Nossa visão é de que, em um mundo digital, medidas de saúde precisarão extrapolar os limites das paredes de um hospital ou o tamanho das folhas de um bloco de prescrição.

    Quais são os planos para essa nova fase na carreira? O que vocês pretendem fazer no hospital?
    Acreditamos que inovação é um esporte coletivo e uma habilidade a ser desenvolvida em todos os nossos colaboradores. Para isso, temos um espaço de cerca de 800 metros quadrados, em plena avenida Paulista, no qual criamos três laboratórios. Um é o Data Lab, onde usamos Inteligência Artificial para desenvolver modelos para suporte à decisão clínica em múltiplas especialidades e na gestão – como, por exemplo, interpretação de exames de radiologia, predição de deterioração clínica e de giro de leitos para Covid-19 – além de liderarmos um cluster em uma plataforma global de estudos em Real World Evidence [“evidências do mundo real”, termo para conjuntos de dados coletados fora dos estudos clínicos controlados].

    O HX, Healthcare Experience Lab, tem como objetivo desenvolver projetos que buscam aprimorar a experiência de pacientes e profissionais da saúde, utilizando realidade virtual e aumentada.

    Já fazemos uso dessas tecnologias para planejamento cirúrgico, redução de ansiedade de pacientes pré-procedimentos, treinamento de colaboradores e para reabilitação em fisioterapia. E há o Maker Lab, que tem como foco a prototipação rápida e impressão 3D. Contamos com um time absolutamente diverso constituído por médicos, enfermeiros, desenvolvedores de games, cientistas de dados, arquitetos e engenheiros de dados, farmacêuticos e enfermeiros. Com time, espaço e ferramentas adequadas, somos capazes de dar suporte à realização de projetos que atendam às necessidades tanto do hospital quanto do ecossistema de saúde como um todo, sob a lógica de cocriação e open innovation. Nos últimos oito meses, nosso time teve um crescimento de 300% e o número de projetos e iniciativas aumentou mais de 150%.

    Tour apresenta o Centro de Inovação do Oswaldo Cruz

    A plataforma Fabrik já rendeu? 
    Sim. O Fabrik é uma plataforma digital de fomento à cultura e desenvolvimento de skills de inovação. Ela permite que os colaboradores, sejam eles de áreas assistenciais ou não, compartilhem suas ideias de maneira espontânea, e que diferentes áreas do hospital lancem desafios para problemas específicos. O primeiro desafio, divulgado no lançamento da plataforma, em maio, tem como tema a experiência do paciente e a transição do cuidado. Já tivemos 18 ideias provenientes de diferentes setores. Após mentorias e avaliações, 12 foram aprovadas para a segunda fase e oito, para a terceira fase. Os finalistas farão um pitch, uma apresentação rápida, com suas ideias, e depois será feita a decisão final dos projetos a serem implementados na instituição.

    Como surgiu seu interesse por inovação na medicina? 
    Meu interesse surgiu da percepção de que, apesar de termos tido realizações incríveis na medicina, como mapear o genoma humano inteiro e sermos capazes de fazer cirurgias usando robôs, acredito que ainda não inovamos de verdade em saúde. Já trabalhei em hospitais pequenos e grandes, na capital e no interior. Tanto no sistema público quanto no privado. No Brasil e fora dele também. De hospitais com os recursos mais avançados a hospitais de campanha em situação de catástrofe, como no Haiti, após o terremoto de 2010. 

    E percebi que todos esses hospitais contam um denominador comum: a prática de uma medicina reativa – depois que a doença ocorreu –, episódica e “tamanho único”, de acordo com o que funciona para a maioria das pessoas – que é o que os estudos tradicionais nos ensinam – e não de acordo com o que seria ideal para cada uma delas. 

    A única maneira de mudar esse cenário é por meio do cruzamento de uma infinidade de dados: socioeconômicos, de comportamento, genômica, de sensores, de exames clínicos para entender a vida e o organismo de cada indivíduo de uma forma mais completa. E, assim, poderemos começar a tratar pessoas em vez de doenças. De maneira cada vez mais personalizada. A boa notícia é que hoje em dia não faltam dados: 90% dos dados que existem no mundo, hoje, foram criados nos últimos dois anos. E na medicina isso ainda é mais proeminente. 

    Em 1950, o conhecimento médico do mundo levava 50 anos para se duplicar. Desde 2010, isso já ocorre a cada três anos. 

    Ou seja, um estudante que entrou na faculdade de medicina em 2010 viu a quantidade de conhecimento dobrar duas vezes até o fim do curso em 2016. E em 2020, isso começou a ocorrer a cada dois meses e meio. O problema é que o cérebro humano não é um “hardware” suficiente para processar isso tudo… 

    E, nesse momento em que cada paciente tem se tornado um desafio de big data, já não é suficiente apenas ter boa vontade e trabalhar duro. Nós, médicos e profissionais da saúde, precisamos de ajuda. 

    E é aí que entram a inovação e a tecnologia. Foi a partir dessa constatação que eu tive meu “chamado” e comecei a traçar esse caminho, de maneira complementar à atuação assistencial tradicional à beira-leito. Na minha visão, assim como o telefone não substituiu a voz humana, mas aumentou o alcance dela, é preciso entender que a tecnologia e inovação começam a se tornar ferramentas para ampliar o potencial dos nossos cérebros e a capacidade de fornecermos um cuidado melhor: mais personalizado, eficiente e, por mais irônico que possa parecer, até mais humano.

    Você falou no TEDx sobre inteligência artificial na medicina. Que avanços e mudanças aconteceram no setor nesses últimos dois anos?
    As principais mudanças que ocorreram nos últimos dois anos foram maiores esforços em relação à importância do desenvolvimento de boas práticas de coleta de dados nas instituições de saúde, uma maior maturidade e entendimento dos cenários em que essa tecnologia é benéfica. E, consequentemente, um melhor uso dela na saúde, com mais casos de sucesso. Pode-se comprovar isso pelo aumento do número de algoritmos de IA aprovados para uso clínico junto ao FDA [agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos].

    Você disse em um podcast recente que nosso organismo gera “300 milhões de livros, em informação de saúde, mas que só analisamos 0,5%”. Como a tecnologia pode melhorar essa taxa?
    É o que falei antes. Um grande exemplo disso foi a startup canadense BlueDot, que, por meio da análise de dados, foi capaz de prever a pandemia de Covid-19 antes mesmo da OMS e do CDC [Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA].

    Podemos dizer que você é uma entusiasta dos dados. Como foi sua experiência como primeira médica no Watson Health na América Latina e, especialmente, como foi trabalhar em uma gigante centenária de tecnologia como a IBM? Digamos que não é o “sonho de consumo” que imaginamos que médicos têm, certo?
    Discordo de sua percepção. O “sonho de consumo” dos médicos, ao longo de suas carreiras, é ajudar e impactar positivamente as vidas – e a saúde – do maior número de pessoas que puderem. Na minha visão, a tecnologia aumenta o alcance de nossas intervenções em saúde em escala exponencial e não pode ser dissociada da medicina em um mundo digital. Da mesma forma que o trator não substituiu a musculatura dos agricultores, mas sim ampliou o poder dela, a tecnologia faz o mesmo com nossa capacidade de entregar um cuidado de excelência, especialmente em regiões carentes, tanto de recursos quanto de médicos especialistas.

    Foi isso que minha experiência na IBM, em Watson Health, me permitiu viver: trabalhar colaborativamente – e aprender muito – ao lado de algumas das mentes mais brilhantes da tecnologia, em diferentes países.

    E colocar em uso todo o arsenal tecnológico, especialmente a IA, de maneira a contribuir para a resolução de desafios e gargalos crônicos da saúde, além de fazer coisas incríveis como, por exemplo, ajudar os médicos a escolherem os tratamentos com mais chance de sucesso para pacientes com câncer na África, na Índia, no México e até mesmo em hospitais do SUS no Nordeste de nosso país. Foram experiências riquíssimas e que me proporcionaram enorme crescimento enquanto médica e executiva.

    Com base nos caminhos que a medicina tem trilhado nos últimos anos, nesse encontro com a tecnologia, como você acha que as faculdades devem assimilar e se adaptar a esses novos tempos?
    A principal “receita” para formar médicos foi estabelecida em 1910, pelo Relatório Flexner. Foi ele que definiu o que as faculdades de medicina deveriam ensinar. Desde então, muita coisa mudou no mundo, mas pouca no ensino médico. Com isso, a postura natural acaba sendo a de se defender por meio da negação, críticas e combate às transformações e às novas tecnologias, como a IA. 

    Então, em vez de fazer estudantes decorarem as artérias do polígono de Willis ou a cascata de coagulação, os currículos das faculdades de medicina precisam de um “control+alt+del”: reiniciar o sistema para ensinar os futuros médicos a aprender no mundo digital. 

    Redirecionar o foco da ênfase na memorização para a gestão do conhecimento, priorizando a capacidade de encontrar, avaliar e sintetizar a informação. E comunicar isso com clareza e empatia aos pacientes. Para isso, é urgente que a educação médica comece a incluir fundamentos de ciência de dados e estatística, funcionamento de algoritmos e tomada de decisão com o auxílio de ferramentas tecnológicas, além de conceitos de liderança e empatia. Dessa maneira, estimularemos que os novos médicos usem esse momento de transformação e as novas ferramentas tecnológicas para construir o futuro que é melhor para eles e os pacientes. Hoje.

    Que notícia sobre sua especialidade você gostaria de ler no jornal amanhã?
    Posso dizer que 80% dos pacientes aos quais intensivistas como eu fornecem assistência ao longo de cada um de seus dias de trabalho e plantões na UTI estão internados lá em decorrência de complicações de doenças crônicas, como infartos, AVCs ou devido à progressão de algum câncer. Dessa maneira, a notícia que eu gostaria de ler é a de que conseguimos, finalmente, tirar o foco do modelo reativo, de tratar as pessoas depois que as doenças já progrediram e se estabeleceram, e lançar mão das novas tecnologias e da análise de dados de forma a caminhar da contingência em direção à predição de agravos. Seja para evitar doenças crônicas, como o diabetes e a hipertensão e suas complicações, ou mesmo novas pandemias. Assim, começaremos a dirigir olhando para a frente, e não para o retrovisor, quando o assunto é medicina.

    Fique por dentro das melhores histórias de inovação em saúde: assine nossa newsletter.

    Confira Também: