• “Se a inteligência é fazer escolhas baseadas em experiências e informações, a memória é mais importante que tudo”, afirma especialista

    Renato Alves, fundador da Memory Academy
    Renato Alves, fundador da Memory Academy. (Foto: Divulgação)
    Jose Renato Junior | 31 out 2022

    Você já deve ter ouvido que precisamos exercitar o cérebro para deixá-lo saudável.

    O escritor, pesquisador da área de cognição e memória e palestrante internacional Renato Alves, 50, – o primeiro a ser homologado como recordista nacional de memorização, em 2006, pelo Livro dos Recordes Guinness – gosta de dizer que o cérebro precisa estar em ebulição:

    “Quando a vida é cercada de atividades que ficam o tempo todo mexendo e remexendo nos porões da memória, naquele conhecimento todo, você tem uma pessoa que faz escolhas mais rápido.”

    Em 1996, Renato desenvolveu um método de ativação e treino de memorização – que não tem nada a ver com “decoreba” – para não ser reprovado na faculdade de ciências da computação. Trata-se da Mnemoterapia, que une terapia cognitiva e mnemônica (técnicas para desenvolver a memória).

    Desde então, fez uma pós-graduação em Ciências Cognitivas e Filosofia da Mente, quando a neurociência ainda nem era pop; ensinou seu método a amigos e alunos; escreveu nove livros – o décimo, sobre aprendizagem acelerada, sai no primeiro semestre de 2023 –; participou como conferencista em eventos dentro e fora do Brasil; e em 2004, formatou um modelo de negócio para disseminar seu método por meio de cursos online pré-gravados e mentorias online ao vivo pela Memory Academy, por onde já capacitou mais de meio milhão de estudantes.

    Renato é defensor da ativação de nossas áreas nobres de processamento cerebral e da diminuição do que ele chama de “memória artificial” – o smartphone, que ele considera um sequestrador de atenção. 

    “Quantas vezes alguém está fazendo algo importante e basta chegar uma notificação para perder o foco e vagar sem rumo pelas redes sociais?”

    Segundo o pesquisador, quando um conteúdo é processado pelo cérebro – seja uma matéria acadêmica ou um número de telefone –, o percentual de memorização aumenta, porque os atos de concordar, discordar e refutar ativam a rede neural, aumentam suas conexões e promove a memorização por semanas, meses ou por toda a vida, dependendo do uso.

    Em uma conversa com FUTURE HEALTH, Renato Alves fala sobre memória, concentração e exemplifica como nosso cérebro funciona:

    FUTURE HEALTH: Você é formado em Ciências da Computação, chegou a trabalhar com isso? Por que deixou a área?

    RENATO ALVES: Comecei meus estudos em ciências da computação em 1991. Entre 1988 e 1991, chegaram ao mercado os computadores pessoais e o PC ficou mais acessível.

    Empolgado com computadores na fase do vestibular, de escolher uma faculdade, optei por computação. Pensei que aquilo era o futuro… e não errei, né? 

    Depois que me formei, descobri que a minha veia é mais mentalista do que de programador.

    Então comecei a migrar para as ciências cognitivas e para a filosofia da mente – ainda não se usava o termo neurociência – e me apaixonei pelas teorias a respeito do funcionamento da mente humana.

    FH: É curioso você ter começado por ciências da computação, porque as redes neurais computacionais, em que se baseia a inteligência artificial (IA), imitam o funcionamento do cérebro humano… 

    RA: Nada acontece por acaso (risos). Se eu não tivesse feito computação, provavelmente não estaria trabalhando nessa área hoje. 

    Estudar programação, algoritmos e linguagens computacionais molda até a forma de pensar… você começa a bolar suas estratégias como um programador.

    E quando comecei a estudar a mente humana, adivinha: passei a analisar a memória humana a partir do ponto de vista da programação. 

    FH: Esse ponto de vista é o passo a passo, o encadeamento de cada linha de código programado?

    RA: Exatamente. Quais são os processos, as etapas necessárias para se chegar onde quer. 

    Quando você programa, cria bancos de dados no computador, há toda uma sequência de processos para processar e armazenar informações.

    Passei a pensar na mente humana, especialmente na memória humana, sob o prisma das linguagens de programação. 

    “Peraí… se eu tivesse que memorizar uma palavra, que processo eu utilizaria?”

    FH: Como foi o desenvolvimento do seu método, a mnemoterapia? 

    RA: O processo de construção das minhas técnicas veio quando eu estava precisando melhorar minhas notas na reta final na faculdade de computação.

    Não me lembrava de muita coisa das aulas, às vezes, não entendia o que a professora explicava, o que me frustrava como estudante.

    Percebi que o problema era o esquecimento, ou seja, a dificuldade de retenção de informações na memória. 

    Um dia, um amigo me disse pra tomar um “remédio pra memória”. Na verdade, era um livro de memorização de um autor chamado Harry Lorayne [mágico especialista em proezas de memória], que ensinava truques para memória e que também se baseava lá na Grécia Antiga, onde eles usavam os mnemônicos… 

    Tem a história do poeta Simônides de Ceos (556 a.C. – 468 a.C.), que gravava poemas longos. Comecei a ler o livro e vi que, se eu conseguia memorizar 50 palavras ou um número com 40 dígitos, meu problema não era a memória em si.

    A escola não tinha me ensinado como gravar as matérias, o conteúdo na memória. Então, peguei aquele sistema, os métodos de associação e mnemônicos e adaptei para textos, fórmulas da faculdade, funções de computação… e comecei a lembrar de tudo. Descobri que tinha uma memória que funcionava bem.

    A partir daí, comecei a ensinar alguns amigos. No final da faculdade, dava aulas numa escola de informática e passei a ensinar esses mnemônicos para os meus alunos. E foi assim foi que isso começou a virar minha profissão. 

    A pós-graduação veio depois por uma busca por uma titulação, porque naquela época, eu já tinha o método embasado. Então, eu quis fazer algo que me trouxesse mais autoridade.

    FH: E como você juntou os conhecimentos acadêmicos da pós-graduação com o que você já fazia na prática?

    RA: Eu poderia dizer que tem algum pequeno ponto de ineditismo na forma que uso para abordar a memória. Vou dar um exemplo. Se eu pego e mostro na câmera [a entrevista é realizada por videochamada] para você um objeto como esta caneta [mostra uma esferográfica para a câmera], automaticamente você olha para o objeto e talvez demore alguns milissegundos para reconhecer ou dizer que é uma caneta. 

    O que aconteceu? Você buscou na memória uma informação pré-existente, equivalente a este objeto aqui e aí diz: é uma caneta. 

    Se eu lhe mostrar um objeto completamente desconhecido, você vai olhar pra ele durante mais ou menos 250 milissegundos, vai acessar os porões da sua memória em busca de alguma coisa semelhante àquilo. Se não achar nada muito parecido, vai tentar adivinhar.

    Não entra nenhum conteúdo na nossa memória, especialmente após os sete anos de idade, que não seja por associação. E aqui entra a analogia com a computação.

    Quando você começa a analisar os processos da memória, linha por linha, passo a passo, sai um diálogo mental mais ou menos assim: 

    – “O que eu estou fazendo agora? 

    – Tentando buscar algo equivalente. 

    – Não encontrei, então este é um dado novo que precisa ser melhor analisado. Ele tem que ter um nome, um local”. 

    Quando a memória encontra algo equivalente ao que se está observando, rapidamente consegue associar e, quando você tem consciência disso, grava mais rápido.

    E sabe o que mais descobri? Com a consciência sobre o processo, a curva do esquecimento – após 24 horas, uma pessoa esquece mais de 70% – é invertida. 

    E se você fizer uma breve revisão daquilo, volta a ficar com 100% de retenção de memória. Se você faz uma escala de revisões programadas, pode ficar com as informações por semanas, meses e até por anos na cabeça.

    Essa análise só foi possível pela integração entre meus conhecimentos de computação e a literatura sobre o funcionamento da memória. 

    Importante acrescentar: com criança é diferente. Vamos usar a metáfora da página em branco… a criança memoriza pela repetição. Então, ela assiste ao mesmo episódio do desenho animado da Peppa quinhentas vezes e repete os diálogos mesmo sem nem ter consciência do que está dizendo.

    A criança usa esse processo de repetição até formar uma base de dados que a permita fazer associações. A partir disso, a memória crescer numa velocidade extraordinária. 

    FH: Você pode explicar a diferença entre “decoreba” e o processo de memorização?

    RA: Já conversei com alguns técnicos do Ministério da Educação (MEC) e eles não reconhecem a memorização como método, porque eles mesmos fazem a confusão entre memorizar e decorar.

    Por exemplo, a prova da memorização é a explicação. Se você estuda um conteúdo, dez informações, e consegue explicá-lo, significa que a informação está registrada em sua memória. Eu estou pronto para fazer uma avaliação quando eu consigo explicar aquele conteúdo de forma que uma criança – e não um adulto! – compreenda.

    Quando você explica para um adulto, explica como se fosse para si mesmo e sempre conclui que você entendeu. 

    Quando você tenta explicar para uma criança, tem que reduzir aquele conceito, aquelas ideias, tem que formar imagens, construir metáforas, fazer associações. Se conseguir isso, está preparadíssimo para uma avaliação. Eu ensino isso, inclusive, para estudantes de direito que farão a prova da OAB.

    Já o decorar é um processo de repetição sistemática de uma mesma informação até a saturação das memórias operacionais, que são memórias de trabalho. Nos estudos, a “decoreba”, geralmente, tem prazo de validade. Ou seja, o aluno decora o conteúdo para fazer a prova, vai para faculdade pisando em ovos e nem conversa com ninguém, porque se conversar perde aquela informação. 

    Aí quando ele despeja aquilo no papel, muitas vezes acontece de ele colocar o pé fora da sala e esquecer tudo. Esquece, inclusive, o que escreveu.

    Você consegue aprender sem memorizar? Sim. Você consegue memorizar sem aprender? A resposta também é sim.

    Tem um outro ponto importante que envolve o aspecto emocional. Simplificando, a memória humana tem duas funções – é um mecanismo de defesa e de oportunidade.
    Gravamos instantaneamente tudo aquilo que nos causa dor e sofrimento e também tudo aquilo que causa prazer. De um lado, estão coisas que queremos evitar e de outro as que queremos repetir.

    Eu te pergunto: a leitura de um texto de estudo provoca dor? Não. Provoca o mesmo prazer que comer um sorvete? Não. Então, para onde é que vai o conteúdo acadêmico que estudamos todos os dias em algumas fases da vida? Vai para esse buraco negro chamado esquecimento. 

    Aí entra a técnica de memorização que utilizo e ensino. Mesmo sem causar prazer ou dor, seu eu usar um método mnemônico, consigo gravar esse conteúdo com mais facilidade. 

    FH: Quanto a atenção e o foco são importantes para o sucesso das técnicas que você aplica? 

    RA: A concentração é um estado da mente. Imagine o seguinte. Já estamos conversando há alguns minutos por videochamada. Se você fechar sua câmera e me pedir para descrever o ambiente em que você estava, eu não vou me lembrar direito, porque não estava focado nele, mas no que conversávamos.

    A concentração está intimamente ligada à nossa motivação e propósito. 

    Se eu estivesse decorando a minha casa depois de uma reforma, com certeza conversaria contigo e estaria de olho naqueles dois quadros ali na sua parede. Mesmo que você desligasse a câmera, eu ia dizer que no seu ambiente havia dois quadros muito bonitos, porque na minha mente existem vários setores da minha vida e um deles é a decoração da minha casa, algo que me chama atenção. Então, esse é um gatilho de memória enquanto conversamos aqui na entrevista.

    William James [filósofo, historiador e psicólogo americano] já dizia lá em 1890 que a atenção era seletiva, sustentada e dividida. 

    Ou seja, você escolhe no que se concentrar e aí vem a motivação: a concentração é alimentada pelo interesse.

    E se eu decidi que vou me concentrar na entrevista, tenho que sustentar isso, apesar de haver um monte de e-mails e mensagens chegando. 

    Muitas pessoas dizem não ter concentração e até se autodenominam hiperativas, com déficit de atenção. São pessoas que sabem que precisam se concentrar, só que não têm um ambiente preparado para mantê-las concentradas.  

    Muitas mães se queixam que os filhos não conseguem se concentrar na leitura de um livro, na sala de aula ou nos estudos. Eu sempre pergunto: “Vem cá… Ele não se concentra em absolutamente nada?” Aí a mãe diz: “Quando ele joga videogame, eu posso chamar, derrubar a casa, que ele não me escuta!”

    Peraí, então existe concentração, só que talvez não haja motivação suficiente para que ele se concentre na leitura do livro. E por que não tem? Porque a criança não sabe o que precisa fazer para manter a concentração durante a leitura do livro.

    FH: Em termos de memorização, qual é a diferença entre aprendizagem presencial e remota, via EAD? 

    RA: A diferença está no emissor – o professor, o palestrante, o líder da reunião –, que é quem determina o grau de concentração de quem está aprendendo. É essa pessoa que que vai dar o tom do aprendizado. 

    O que faço muito quando falo em público, é usar a antecipação, a preparação do público. Quando eu preparo bem o público, já nos primeiros minutos tenho uma audiência mais focada e concentrada, independentemente de ser uma videoaula ou uma apresentação ao vivo.

    FH: Você fala também das distrações cotidianas, com quantidades enormes de estímulos de várias telas que nos deixam “viciados” em cada vez mais estímulos. O quanto isso alterou a forma de aplicar suas técnicas? 

    RA: Alterou bastante. Quando comecei a trabalhar com técnicas de memorização, as pessoas queriam memorizar o número de telefone, senhas de banco, e-mail, memorizar conteúdos para faculdade ou escola. 

    Em 1997, celular não era algo popular, então, havia horário para fazer a leitura de um livro e outras atividades que requerem concentração. Hoje, as pessoas querem acalmar a mente ou até desligar para tentar focar melhor… querem se desligar um pouquinho desse mundo tecnológico viciante pra poder ler mais livros, porque entenderam que existe essa demanda por pessoas com conhecimento mais específico.

    Por outro lado, tenho também um grupo de pessoas que querem aprender a lidar com o volume de informação. O que muda nesse cenário todo é o objetivo. Tem quem queira gravar mais informações em menos tempo e, nesse ponto, a memorização e a leitura dinâmica auxiliam.

    Mas para isso precisamos preparar bem essa pessoa, usando até técnicas de meditação para acalmar a mente. É que a tecnologia está tirando algo essencial que é a paciência.

    Estudo requer paciência. Leitura requer paciência, reflexão, calma. Por mais que você use uma técnica de leitura veloz, depois, tem de parar para o cérebro poder acomodar todo aquele conhecimento. Essa é a hora de fazer uma reflexão. Só que em vez de refletir, a pessoa fica checando a rede social, vendo quem curtiu a foto dela, se chegou mensagem.

    Hoje, todo mundo sabe que as redes sociais trabalham com o sistema de recompensa do cérebro – liberando dopamina. Se você ganhou um coração ou um comentário, fica feliz e quer mais.

    FH: Então, podemos afirmar que, fisiologicamente, o cérebro precisa de um tempo para acomodar as informações?

    RA: Sim, ele precisa desse tempo e também de sono. Ele é essencial no processo de memorização, de concentração. Quando a pessoa dorme menos do que precisa, pode ter dificuldades nesses pontos. 

    FH: Aprender um bom processo de memorização influencia na capacidade intelectual de uma pessoa?

    RA: Eu acredito que sim. Eu gosto daquela definição: a memória é o parque de diversões da inteligência. 

    Se a inteligência é a capacidade de fazermos escolhas baseadas em dados, experiências e informações – ou seja, memórias –, a memória é mais importante que tudo.

    Quando me perguntam como melhorar a memória de um idoso, eu gosto de propor um teste. Vou fazer com você agora. Imagine que a gente está fazendo uma palavra cruzada; você encontra seis quadradinhos para seis letras de uma palavra; para cuja pergunta é: qual é o filhote do sapo?

    [A repórter responde: girino]

    Aí eu te pergunto se você pensou em girinos hoje, ontem, semana passada, este mês?

    [A repórter responde: não]

    O que aconteceu? Em 250 milissegundos, você vai lá no porão da sua memória; busca uma informação que estava ali sabe-se lá há quanto tempo sem utilizar; pega essa informação e leva lá para o topo da memória operacional. 

    Então, se amanhã você estiver trabalhando num texto e precisar de um exemplo, de repente, você vai lembrar do girino porque é uma informação com que você lidou recentemente.

    Por que dizem que palavra-cruzada é um exercício para memória? Porque ela trabalha com “girinos que estavam no porão da memória” que você não ativava há muito tempo. 

    Quando você tem um cérebro em ebulição, ou seja, quando a sua vida é cercada de atividades que ficam o tempo todo mexendo e remexendo nos porões da memória, naquele conhecimento todo, você tem uma pessoa com mais velocidade para fazer escolhas – o que, a meu ver, descreve uma pessoa mais inteligente. 

    FH: A perda da memória por senilidade pode ser tratada com suas técnicas?

    RA: Esse é um ponto supersensível. Vamos imaginar que temos fios que acessam a memória, como se formassem um cabo.

    Com o passar do tempo, esse cabeamento recebe sol, chuva e vai se deteriorando. Aí, chega um momento em que os fios que formam esse cabo começam a romper até o ponto em que perdemos o contato com a memória. 

    A demência tem esse aspecto – o problema não está na memória em si, o problema está no organismo que a acessa. 

    Há estudos que dizem que a atividade física aeróbica pode prevenir e, em alguns casos até reverter, processos iniciais de Alzheimer. É como se o cabo que acessa a memória passasse por uma manutenção, um reforço com fita isolante ali. 

    Atividade física, boa alimentação, bom sono, enfim, qualidade de vida, ajuda a preservar o acesso à memória. Ou seja, cuidando do corpo, cuidamos da memória.

    Outra coisa que influencia para uma boa memória é o que falei sobre a ebulição, estar sempre mexendo com a memória. 

    Costumo dizer que a memória é mais comportamento do que técnica. Devemos olhar com carinho para nossa memória e começar a repensar essa questão do uso de memórias artificiais.

    Toda vez que escolhemos usar memórias artificiais [calculadoras e agendas eletrônicas, por exemplo] – que caem, quebram, queimam, alguém rouba, pifam – e deixa de usar funções naturais do cérebro, quando precisarmos dela, de fato, ela pode ficar preguiçosa ou falhar.

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