• “Alguns pacientes se deslocam 400 km para fazer radioterapia. Isso é inviável”, diz radioncologista Gustavo Nader Marta

    Gustavo Nader Marta é radioncologista
    Jose Renato Junior | 2 maio 2022

    Todos os anos, são diagnosticados cerca de 600 mil novos casos de câncer no Brasil e registradas aproximadamente 200 mil mortes. Estes, por si só, já são números altíssimos.

    As projeções, no entanto, indicam que o problema deverá se agravar ainda mais nas próximas décadas, principalmente por causa do envelhecimento populacional e das mudanças no estilo de vida, que aumentam os fatores de risco para o surgimento da doença. 

    Diante desse cenário, é cada vez mais urgente e necessário fomentar o desenvolvimento de políticas e iniciativas – tanto públicas quanto privadas – para combater a enfermidade e, ao mesmo tempo, aumentar os investimentos em tratamentos, sobretudo na radioterapia.

    É no que acredita o radioconcologista Gustavo Nader Marta, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT) e médico titular do Serviço de Radioterapia do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo.

    “A modalidade, que utiliza a radiação ionizante para destruir ou incapacitar a duplicação das células cancerígenas, apesar de ser um dos pilares do tratamento da patologia junto com a cirurgia e as terapias sistêmicas, ainda não é acessível para boa parte da população brasileira”, aponta o especialista.

    Para se ter uma ideia, um estudo realizado pela SBRT constatou que cerca de 5 mil pessoas morrem de câncer no Brasil todos os anos por falta de aparelhos de radioterapia. 

    “Essa é uma triste realidade. Devido ao tamanho da população do país e às desigualdades regionais, existem realmente muitos pacientes em fila de espera que não conseguem acesso ao tratamento”, diz Marta.

    O médico, que também é membro associado da American Society for Radiation Oncology (Astro), da European Society for Radiotherapy and Oncology (Estro) e da Society for Neuro Oncology Latin America (SNOLA) e professor associado ao programa de Pós-Graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), explica que isso acontece porque, no Brasil, existe um déficit tanto no número de centros especializados quanto de profissionais da área.

    Em conversa com Future Health, ele dá mais detalhes sobre essa situação, indica possíveis caminhos para resolvê-la e destaca seu trabalho nas áreas de pesquisa e inovação.

    Por que exatamente você escolheu a especialidade de radioterapia?
    Durante a graduação em medicina na Faculdade de Medicina de Sorocaba da Pontifícia Universidade Católica [PUC], me interessei pela área de oncologia. Esse interesse começou mesmo a criar corpo a partir do terceiro ano, que foi quando tive de fato um contato maior com pacientes oncológicos. Mas, inicialmente, mais com as cadeiras da oncologia clínica e cirurgia oncológica. A partir daí, meu envolvimento só cresceu, a ponto de eu ter a oportunidade de fazer estágios extracurriculares em alguns centros importantes de oncologia. 

    Foi quando percebi que, na verdade, existia uma terceira área que eu não conhecia até então a fundo, a radioterapia. E eu não conhecia porque na graduação não havia algo mais direto relacionado a isso. 

    Claro que eu sabia que os pacientes faziam esse tratamento, mas era só isso. Quando estava no quinto ano da graduação, resolvi que queria saber mais sobre a radioterapia, e fui fazer isso. Tive, então, contato com serviços locais e de abrangência nacional, inclusive alguns bem tradicionais, como o AC Camargo. Acabei me encantando pela especialidade.

    E o que exatamente provocou esse encantamento?
    Essa é uma especialidade que tem um dinamismo diferente de tudo o que eu tinha visto até então. A radioterapia pode ser usada como tratamento exclusivo para o câncer, como tratamento adjuvante [associada à cirurgia ou quimioterapia para eliminar células tumorais que possam ter ficado na área próxima ao tumor] ou neoadjuvante [administrada antes do tratamento principal, em geral cirúrgico, visando diminuir o tumor e facilitar o procedimento] e até como paliativo [administrada em pacientes que não têm perspectiva de cura com o objetivo de aliviar sintomas, como dor e sangramento]. Existe também uma dinâmica e uma interação muito grande com as outras clínicas, é claro, a oncologia clínica e a cirurgia oncológica. 

    Outro ponto que me cativou foi a possibilidade de trabalhar com alta tecnologia, já que a radioterapia está muito relacionada com desenvolvimento tecnológico e inovação. 

    De acordo com o relatório RT 2030, elaborado pela SBRT, menos da metade das vagas de residência médica da especialidade estão preenchidas. Por que a radioterapia não atrai tantos médicos? A falta de atração está relacionada primeiro com a base. A base curricular, na grande maioria das universidades do país, ou aborda a radioterapia superficialmente ou simplesmente a omite. O resultado disso é que falta conhecimento.

    Por exemplo, eu tenho vários colegas médicos que não têm ideia do que eu faço. Essa é a triste realidade. E, se as pessoas desconhecem, como vão se interessar em ser um especialista dessa área? 

    O segundo ponto é que há um certo grau de limitação hoje no país. Para exercer a profissão, necessariamente o radioncologista precisa estar envolvido em um centro de referência, que tenha equipamentos instalados e funcionando. É diferente de optar por fazer cardiologia. Neste caso, o médico precisa apenas de um hospital para trabalhar, e isso é mais fácil – afinal, todas as cidades têm hospital. Fora isso, ele pode abrir uma clínica e exercer a sua profissão com autonomia. Mas na radioterapia isso não acontece. O especialista precisa obrigatoriamente de um centro especializado, e não é toda cidade que tem.

    O que é preciso fazer para atrair mais médicos para a área?
    É preciso revisitar essa questão no currículo nacional. E mais: talvez valesse a pena revisitar também a grade da formação em oncologia de forma mais ampla. Além disso, acredito que possam ser feitas atividades de cunho nacional na tentativa real de envolver os acadêmicos. 

    Por exemplo, o Hospital Sírio-Libanês, instituição na qual estou inserido, promove um evento exatamente nesse cenário. 

    O objetivo é nos aproximar dos acadêmicos do Brasil e tirar suas dúvidas sobre as diversas áreas que eles podem optar, cirúrgicas e não cirúrgicas. Acredito que esse tipo de atividade deveria ser replicado de forma mais constante nos diversos cenários. E cabe ainda à SBRT atuar de forma mais ativa para motivar os acadêmicos de medicina em relação à importância da especialidade.

    Você comentou sobre a falta de centros especializados. Pois um outro estudo da SBRT apontou que cerca de 5 mil pessoas morrem de câncer no Brasil todos os anos devido à falta de aparelhos para o tratamento de radioterapia. Por que isso ainda acontece e como resolver essa questão?
    Essa é mais uma triste realidade brasileira. Devido ao tamanho da população do país e às desigualdades regionais, existem realmente muitos pacientes em fila de espera que não conseguem acesso e, infelizmente, acabam morrendo. Uma das explicações para isso é a falta de capacidade instalada. Como comentei um pouco antes, não é toda cidade que possui um centro de referência. 

    O relatório RT 2030 mostra que tem paciente que precisa se deslocar 300, 400 quilômetros para chegar em um serviço de radioterapia. Isso é inviável. 

    E ainda sofremos com a falta de mão de obra capacitada – e aí não estou falando só de médicos, mas de todos os profissionais que estão diretamente relacionados à radioterapia: físicos especialistas, tecnólogos, técnicos e enfermeiros especialistas na área. Portanto, no Brasil, há um déficit tanto de capacidade física quanto humana e o resultado é esse: pessoas ainda morrendo por falta de acesso. 

    Para resolver este problema é preciso, acima de tudo, que haja conscientização sobre as necessidades e que sejam feitos investimentos reais, e não apenas para a instalação de novos centros, mas também para a modernização e o não sucateamento dos já instalados.

    Mais um ponto é incentivar a formação de profissionais gabaritados e lhes promover remuneração adequada. No SUS [Sistema Único de Saúde], hoje, existe um déficit da tabela do que se paga de 10 anos. São 10 anos que não se faz reajuste do que se repassa para radioterapia. 

    Como a SBRT tem atuado para melhorar a situação?
    Na saúde pública, a Sociedade tem trabalhado para mostrar o déficit e as necessidades da área e que o repasse está totalmente aquém da realidade. Na suplementar, estamos com alguns projetos interessantes para a solicitação de incorporação de novos procedimentos no hall da Agência Nacional de Saúde (ANS). 

    Isso é importante porque a radioterapia é muito dinâmica no que se refere à inovação tecnológica. 

    É uma especialidade que está sempre se aprimorando para oferecer cada vez mais benefícios para o paciente, desde melhores resultados clínicos e taxas de sobrevida até menos efeitos colaterais. E a SBRT também atua de forma mais global, com foco em promover educação continuada, reciclagem de conteúdos acadêmicos e atividades de congresso e simpósio. 

    Como está a área de radioterapia no Brasil na comparação com o resto do mundo?
    Não é simples falar de Brasil porque o país tem diversas realidades. Em algumas localidades, por exemplo, temos centros de excelência que não deixam nada a desejar aos grandes centros americanos, canadenses e europeus. Por outro lado, temos regiões, em especial Norte e Nordeste, que não contam com nenhum centro ou então que possuem centros com muitas carências. 

    Se pegarmos a realidade americana, há anos a radioterapia é uma das especialidades mais concorridas e procuradas. 

    Lá, os futuros médicos têm contato com a área na grade de formação, sem contar que o país possui muito mais parques e, portanto, mais oportunidades de trabalho. Além disso, as instituições norte-americanas têm condições e incentivos para desenvolver protocolos de pesquisa clínica mais robustos.

    Aqui, até existem alguns polos de pesquisa que contam com bons projetos e praticam boa ciência, inclusive com contribuição mundial, mas são poucos e, geralmente, sem incentivos. 

    As pessoas da área da radioterapia que acabam produzindo pesquisa no país fazem isso mais por envolvimento e paixão do que por ter algum suporte. Nos Estados Unidos isso de fato é mais amplo. Agora, quando falamos de Canadá e alguns países da Europa, neles é oferecido para a população um sistema de saúde parecido com o SUS. A diferença é que neles o acesso à radioterapia funciona melhor.

    Você é uma dessas pessoas envolvidas com pesquisa clínica e inovação em radioterapia no Brasil. O que pode contar sobre isso?
    Estou realmente envolvido em alguns projetos, que vão desde estudos retrospectivos para demonstrar casuísticas institucionais, passando por estudos epidemiológicos para traçar os perfis relacionados com os tratamentos de radioterapia e os desfechos dos pacientes tratados no país e até estudos relacionados ao custo e à efetividade das técnicas de tratamento da radioterapia.

    Mas não posso deixar de repetir que fazer pesquisa no Brasil é sempre algo bastante penoso. 

    Comparando com Estados Unidos, Canadá e a maioria dos países da Europa, os recursos que temos para tal acabam sendo bastante escassos. Enfim, é algo que deveríamos ter mais engajamento e, apesar da sua importância na prática clínica, infelizmente pouco se produz no país. Além disso, tenho tentado formar grupos cooperativos com colegas envolvidos em pesquisa não só no Brasil como fora. Essa é sem dúvida uma ação que pode ajudar a melhorar o desenvolvimento da ciência e da produção acadêmica no nosso país.

    Você disse que a radioterapia é dinâmica e tem muitas indicações. Hoje, quais são as principais?
    Essa é uma pergunta que não tem uma resposta direta, pois existem diversas indicações para a radioterapia, determinadas de acordo com o local do tumor, o protocolo específico de tratamento, o estadiamento da doença e as interações com outras terapias, seja sistêmica ou cirúrgica. No geral, a modalidade tem atuação em grande parte dos tumores e pode ser usada como tratamento exclusivo, como neoadjuvante, como adjuvante e como paliativo. Alguns exemplos de casos em que há indicação: como tratamento exclusivo em cânceres de próstata, e de cabeça e pescoço iniciais e de baixo risco; antes da cirurgia em tumores de reto, e após a cirurgia em cânceres de mama.

    Do total de pacientes diagnosticados com câncer, quantos têm a indicação de fazer radioterapia?
    Existem algumas estimativas que mostram que, ao longo da jornada oncológica, pelo menos dois terços dos pacientes diagnosticados com câncer vão receber radioterapia em algum momento.

    Quais as técnicas de radioterapia disponíveis hoje em dia?
    Temos dois grandes tipos ou modalidades: a radioterapia externa ou teleterapia e a braquiterapia. Na primeira, a radiação é emitida à distância por um equipamento que fica direcionado ao local a ser tratado. E, na segunda, o material radioativo é colocado em contato ou perto do tumor com o uso de aplicadores específicos. 

    A radioterapia mais usada na prática clínica é a externa, e dentro dela existem algumas diferentes técnicas. 

    A primeira é a 2D ou convencional. Ela é mais rudimentar e sua aplicação é baseada na definição dos alvos de tratamento através de exame clínico e/ou imagens radiológicas bidimensionais, como radiografias, o que muitas vezes limita a visualização da lesão. Além disso, nessa técnica não é possível determinar como a dose de tratamento é distribuída nos tecidos tumorais e nos órgãos saudáveis adjacentes. 

    A segunda é a 3D ou conformada. Nela, sistemas de planejamento são utilizados, com softwares e tomografia. 

    Assim, é possível formatar mais adequadamente as áreas que devem ser tratadas e tudo o que é saudável ao redor e precisa ser protegido. É bem verdade que essa técnica é uma evolução da 2D, mas, em situações específicas, não permite modular adequadamente os feixes de radiação em função da proximidade das estruturas saudáveis ao redor. Isso significa que a dose que chega em órgãos importantes pode ser alta e impeditiva para o planejamento técnico adequado. E, quando isso acontece, temos que optar por ou ultrapassar o limite de dose que aquela estrutura sã tolera ou então subdosar a região do tumor, podendo impactar em piores chances de controle tumoral. 

    A terceira técnica da radioterapia externa é a IMRT, radioterapia com modulação da intensidade do feixe, a mais moderna que temos atualmente e que tem sido constantemente aprimorada. 

    Ela possibilita que a dose de radiação seja entregue de forma modulada, ou seja, consegue-se concentrar doses realmente mais altas na região em que está o tumor e proteger de forma mais substancial os órgãos saudáveis. Temos ainda uma quarta técnica, chamada de radioterapia estereotáxica, através da qual entrega-se altas doses em volumes relativamente pequenos, mas também com boa capacidade de proteção das estruturas saudáveis.

    Por que a radioterapia externa é a mais usada?
    Porque as suas indicações na prática clínica são muito mais amplas. Mas a braquiterapia também tem suas indicações formais em alguns sítios tumorais, como cólo de útero, que ainda é uma doença bastante frequente nas mulheres no Brasil e na qual essa modalidade tem papel muito bem estabelecido no cuidado das pacientes.

    Fora do Brasil há novidades nessa área?
    No Brasil, a radioterapia externa é baseada no uso de fótons e, algumas vezes, de elétrons. O que existe em alguns países são terapias feitas com o uso de prótons ou íons de carbono. Eles têm uma propriedade física que permite que a dose, após atingir o alvo terapêutico, decaia mais abruptamente, protegendo os tecidos sadios adjacentes.

    No entanto, apesar desse ganho, que chamamos de dosimétrico, que significa que a dose calculada de radiação é menor, existem ainda poucas evidências de sua aplicabilidade de forma mais ampla. 

    Em algumas áreas, como a neuropediatra, quando precisa tratar o sistema nervoso central das crianças, existem mais evidências dos benefícios dos prótons, mas, tirando isso, carece-se de mais evidências médicas. Há questões que precisam ser respondidas: esse ganho dosimétrico de fato vai impactar em menores efeitos colaterais para o paciente e em melhores taxas de controle local para todos os tumores? Não sabemos. 

    Isso sem falar que é um equipamento extremamente caro. 

    Talvez, hoje, custe 10 vezes mais que o acelerador linear de alta capacidade. Mas, mesmo o Brasil não tendo esse tipo de equipamento ainda, é preciso deixar claro que as modalidades de radioterapia que aplicamos estão em constante evolução, tendo capacidade de oferecer um tratamento seguro e eficaz para os pacientes. 

    Por aqui, o tratamento do câncer está muito associado à quimioterapia. Por que essa terapia é mais “famosa”?
    Primeiro é preciso ficar claro o que “famosa” significa. Se é ser mais popular, receber mais investimento e ter mais apelo, aí podemos dizer que, sim, a quimioterapia é mesmo mais famosa que a radioterapia. 

    Quando se compara o investimento que o governo federal faz nessas duas terapias, existe uma desproporcionalidade enorme. 

    Pelos dados do relatório Câncer no Brasil – A jornada do paciente no sistema de saúde e seus impactos sociais e financeiros, idealizado pela Interfarma [Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa], as despesas do SUS em 2017 com o tratamento do câncer foi de R$ 4,5 bilhões. Desse total, R$ 2,2 bilhões, ou 48%, foram para a quimioterapia e apenas R$ 0,4 bilhão, ou 10%, para a radioterapia. 

    Alguns dos pontos que contam a favor da quimioterapia são o lobby feito pelas indústrias farmacêuticas e o fato de existirem mais oncologistas clínicos do que radioncologistas no país. 

    Mas, olha, com isso não quero tirar a importância dessa terapia. Pelo contrário. Ela tem um espaço bem definido e os investimentos devem ser de fato proporcionais. Só que, ao mesmo tempo, as outras modalidades, como a radioterapia, não podem ser esquecidas, pois elas também são fundamentais no tratamento do câncer.

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