• “Dormir mal pode aumentar o risco de doenças, como as cardiovasculares”, aponta médica do sono

    Letícia Azevedo Soster, neurofisiologista e médica do sono
    Letícia Azevedo Soster é neurofisiologista e médica do sono do Hospital Israelita Albert Einstein. (Foto: Divulgação)
    Jose Renato Junior | 8 set 2022

    Globalmente, cerca de 40% da população apresenta algum tipo de dificuldade para dormir, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em se tratando de Brasil, estudos da Associação Brasileira do Sono (ABS) indicam que 73 milhões de pessoas não têm boas noites de sono. 

    Na maioria dos casos, o problema está relacionado ao ritmo agitado da vida urbana moderna, ao estresse e às preocupações do dia a dia e à adoção de hábitos inadequados no momento de dormir, como exposição a telas (celular, computador, tablet, TV). Mas também pode ser desencadeado por fatores genéticos, transtornos emocionais e doenças neurológicas, respiratórias e sistêmicas.

    É preciso pontuar que, quando ocorre de forma isolada, vez ou outra, a falta de sono não é motivo de preocupação. O sinal vermelho acende quando essa condição se torna frequente. A questão é que dormir bem é fundamental para a saúde física e mental e para uma melhor qualidade de vida.

    Letícia Azevedo Soster, neurofisiologista, médica do sono e coordenadora da pós-graduação em sono do Hospital Israelita Albert Einstein, explica que, no momento em que dormimos, o nosso organismo exerce as suas principais funções restauradoras a fim de se preparar para o dia seguinte.

    “Durante o sono, a pressão arterial é reduzida para poupar o coração de grandes esforços; o sistema glinfático promove uma ‘faxina’ no cérebro; a adenosina, substância responsável pela sensação de cansaço e sonolência, é recomposta na molécula ATP (principal forma de energia química do corpo); a memória e o aprendizado são consolidados e os tecidos são reparados”, destaca a especialista.

    O sono é tão importante que, em julho deste ano, a Associação Americana do Coração (AHA, na sigla em inglês) o incluiu nas métricas que determinam os parâmetros para preservar ou melhorar a saúde do coração.

    Segundo a entidade, ter um descanso noturno de qualidade é tão benéfico quanto ter uma alimentação saudável, praticar exercícios físicos, não fumar e controlar o peso, a pressão arterial e a concentração de gorduras e açúcar no sangue.

    Em contrapartida, não ter um sono de qualidade ou em quantidade suficiente pode, no longo prazo, afetar a memória, a concentração e o humor, colaborar para o aparecimento de patologias, como diabetes, obesidade, pressão alta, doenças cardiovasculares, e interferir no sistema imunológico, entre outras consequências.

    Em conversa com FUTURE HEALTH, Soster, que também é responsável pelo Serviço de Sono Infantil e supervisora do Programa de Residência Médica em Sono, ambos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), dá mais detalhes sobre a importância do sono para a saúde, fala sobre os exames mais recentes para diagnósticos de distúrbios do sono e indica hábitos e comportamentos que devem ser adotados por todos para dormir melhor.

    FUTURE HEALTH: Por que ter um sono de qualidade é importante para a saúde como um todo?

    LETÍCIA AZEVEDO SOSTER: Em primeiro lugar, preciso dizer que o sono entra no contexto das 24 horas, o que significa que ele não se desconecta do dia. Contudo, o metabolismo da noite, durante o sono, é diferente do metabolismo do dia, e é neste período que o nosso organismo exerce as suas principais funções restauradoras.

    Ou seja, dependemos de uma boa noite de sono, de um bom metabolismo durante a noite, para termos boa saúde. 

    Se dormimos mal, e aí falo de forma crônica, e não aguda, há algumas coisas que podem acontecer, como aumento do estresse, oscilações de humor e maior risco de desenvolvimento de doenças, inclusive as cardiovasculares.

    FUTURE HEALTH: Por falar em doenças cardiovasculares, a Associação Americana do Coração atualizou recentemente as métricas que determinam os parâmetros para preservar ou melhorar a saúde do coração, e incluiu o sono pela primeira vez. Sendo assim, é possível afirmar que dormir bem é um dos melhores remédios para uma boa saúde cardiovascular?

    Podemos dizer que o sono de qualidade é um importante remédio, mas não sei se eu usaria a palavra melhor. Há tantos medicamentos salva-vidas na área da cardiologia que eu correria o risco de ser um pouco sensacionalista ao fazer uma afirmação desse tipo.

    FH: Durante muito tempo pregou-se que dormir bem era dormir 8 horas por noite. Essa definição ainda é válida?

    LAS: Quando a gente fala de sono de qualidade, isso carrega uma subjetividade muito grande. 

    Há pessoas que dormem pouco, entrecortado, e mesmo assim estão felizes e satisfeitas com o seu sono. Ao passo que há pessoas que dormem muito mais e de forma mais contínua, mas que apresentam queixas.

    A questão é que o sono carrega consigo não apenas o aspecto físico, mas, também, o aspecto biopsicoemocional, de percepção. Além disso, há fatores culturais envolvidos. Na China, por exemplo, as pessoas dormem bem menos do que nos países da Europa. No Brasil, ficamos no meio termo entre eles.

    Respondendo de forma objetiva: é considerado dormir bem quando a pessoa acorda satisfeita com o seu sono.

    Nós, da comunidade científica envolvida nessa área, somos contra essa marcação de que dormir bem é dormir 8 horas. Ao cravarmos que esse é o tempo ideal, podemos estimular perfis neurotizantes e fazer com que quem precisa de menos horas de sono desenvolva uma preocupação excessiva relacionada ao tema se não atingir as 8 horas.

    Temos de ter muito cuidado com esses números, apesar de sabermos que hoje em dia a média de horas dormida pelos brasileiros fica entre 6h30 e 7h30 por noite. Mas isso não significa que quem precisa de 9 horas é preguiçoso e nem que quem precisa de 5 horas tem algum distúrbio.

    FH: Todo mundo já teve uma ou outra noite mal dormida. Mas quando isso passa a ser considerado um problema?

    LAS: Um número cabalístico que temos, e que vale para a maioria das patologias do sono – a insônia, principalmente – é o 3. Neste caso, 3 meses. Esse é o tempo que consideramos que a condição deixa de ser aguda para se tornar crônica.

    FH: Pelos dados da OMS, 40% da população mundial têm dificuldade para dormir. Por que tanta gente dorme mal?

    LAS: Isso, em parte, tem a ver com o estilo de vida que levamos atualmente. Mas para explicar o porquê de estarmos dormindo mal, preciso, antes, explicar os processos que levam ao sono. O primeiro é o Processo S, que são os fatores homeostáticos.

    Quando acordamos de manhã, estamos cheios de ATP (adenosina trifosfato). Aí, ao longo do dia, vamos gastando essa energia, sendo que o gasto promove a quebra das moléculas de ATP, transformando-a em adenosina e fosfato. Quando essa substância está em um nível muito elevado no nosso organismo, nos sentimos cansados e com sono e, quando esse cansaço se torna extremo, acabamos sendo vencidos por ele.

    O outro processo que nos faz adormecer é o C, que são os fatores circadianos (tudo o que gira a cada 24 horas, aproximadamente). O ponto é que o nosso corpo é cíclico, e essa ciclagem é orquestrada pela melatonina, um hormônio liberado apenas no final do dia, no escuro, e que sinaliza para o corpo o momento em que ele deve iniciar o metabolismo da noite e se preparar para o repouso.

    Agora, vamos falar sobre o que está acontecendo nos dias de hoje, sobre os nossos hábitos. Nós não nos desligamos das telas, inclusive à noite. Com isso, a melatonina não é liberada, já que é muito sensível à luminosidade e depende do escuro para a sua liberação. 

    Além disso, nos expomos a notícias e situações estressantes no momento em que deveríamos relaxar. O fato é que, quando ficamos estressados, liberamos cortisol, o hormônio do estresse, e ele bloqueia a melatonina.

    E tem mais: muitas vezes, por causa da correria do dia a dia, a nossa rotina é toda alterada. Por exemplo, em um dia almoçamos às 12h e, no outro, só às 16h. Toda essa situação dá “pistas erradas” ao nosso corpo e atrapalha a liberação dos hormônios e o metabolismo do dia, influenciando diretamente no sono. 

    O que também afeta o dormir bem é ficar postergando este momento. Você está com sono, mas, em vez de se entregar a ele, resolve lutar contra e se força a ficar acordado, passando tempo nas redes sociais ou assistindo televisão.

    O resultado dessa somatória toda é que o corpo fica com acúmulo de adenosina, não libera a melatonina de forma adequada e tem de lidar com o estresse. Assim, ensinamos nosso corpo e cérebro a resistir ao cansaço. O metabolismo, então, fica bagunçado e, consequentemente, o sono é prejudicado.  

    No longo prazo, isso causa privação de sono e, principalmente, insônia, levando muita gente ir atrás de remédios para dormir, quando o ideal seria apenas promover algumas mudanças no comportamento.

    FH: Você comentou sobre o aumento na busca por remédios. Por que isso é perigoso?

    LAS: As pessoas estão terceirizando aos remédios a responsabilidade de promover mudanças em seu comportamento. Eles são uma solução mais fácil, claro, como os remédios para emagrecer. Se a pessoa precisa perder 5 quilos e existe uma pílula que faz isso, ela vai tomar. Assim não terá de fazer dieta e exercício, se esforçar.

    Com o sono acontece a mesma coisa. Só que recorrer a remédios não soluciona o problema, sobretudo quando falamos de insônia. Eles apenas mascaram a questão.

    Fora isso, inicialmente, eles podem até funcionar, mas, depois de um tempo, o cérebro vai pedir doses cada vez mais altas.

    É preciso deixar claro que medicamentos para dormir são drogas que sedam, causam hipnose. Esses remédios vão forçar o cérebro a fazer uma função fisiológica, a de adormecer, para a qual não está pronto. 

    Hoje, estamos vivendo quase que uma epidemia do uso incorreto destes fármacos. Em determinados casos, eles são necessários, mas devem sempre ser utilizados de forma consciente e supervisionada.

    FH: Quais são os distúrbios do sono mais comuns? 

    LAS: O mais comum, disparado, é a privação crônica de sono, que é a menor quantidade de sono ou dormir menos do que precisa. Em segundo lugar estão as insônias, e existem várias formas de classificá-las. Uma delas é de acordo com o momento que ela acontece a noite. 

    Aí temos a insônia inicial (acomete o início do sono, e pessoa fica com dificuldade para começar a dormir), a insônia de manutenção (se dá no meio da noite, e a pessoa fica com dificuldade para manter o sono) e o despertar precoce (a pessoa até consegue dormir logo, mas desperta poucas horas depois e não dorme mais).

    O terceiro é a apneia obstrutiva do sono, um distúrbio respiratório relacionado ao sono que provoca a diminuição ou a interrupção da respiração durante o dormir. 

    De acordo com o Estudo Epidemiológico do Sono (Episono), realizado pelo Instituto do Sono, quase 33% das pessoas que vivem na cidade de São Paulo têm este problema. 

    É um número alarmante, ainda mais se levarmos em conta que no mundo, pela literatura internacional, a prevalência da apneia acomete entre 17% e 22% da população.

    Mas há muitos outros distúrbios como apneia central do sono, hipoventilação e respiração periódica – estes, assim como a apneia obstrutiva, são classificados como distúrbios respiratórios relacionados ao sono –; sonambulismo, terror noturno, despertar confusional e transtorno comportamental do sono REM, que entram no grupo das parassonias; jet lag (distúrbio do clico circadiano) e bruxismo (distúrbio do movimento do sono).

    FH: A sua especialidade é a neurofisiologia, só que nem todo mundo sabe do que se trata. Pode nos explicar o que é e como se dá a sua atuação em relação ao sono?

    LAS: A neurofisiologia estuda as funções neurológicas. Temos várias formas de estudar a ação do sistema nervoso central e periférico, e a neurofisiologia encobre todas elas. 

    Na área específica do sono, avaliamos a fisiologia do corpo durante o dormir através, por exemplo, da atividade elétrica cerebral, da atividade nervosa, da atividade muscular e da atividade de movimentação.

    O objetivo é saber se a pessoa está em sono ou em vigília, se está inspirando e expirando de forma adequada, em quais fase do sono ela chega e quais não chega, se o seu metabolismo está funcionando corretamente etc.

    FH: A medicina está em constante evolução. Em se tratando do sono, o que você destaca como novidade?

    Destaco os exames destinados a detectar os distúrbios do sono. Hoje, o padrão ouro é fazer uma avaliação simultânea de todas as variáveis fisiológicas durante o dormir, como atividade elétrica cerebral, atividade muscular, movimento dos olhos, respiração e saturação do oxigênio. 

    Isso se consegue com a Polissonografia tipo 1, realizada em laboratório ou hospital. Nela, são colocados eletrodos no corpo do paciente e todo o processo é monitorado durante uma noite pelo técnico responsável. O problema é que esse é um exame caro e de difícil acesso, mesmo com a alta incidência de distúrbios do sono.

    Nos últimos anos, porém, tem surgido novos métodos para resolver essas questões. São exames mais fáceis de serem realizados, mais baratos e que oferecem mais conforto ao paciente. Mas tudo com alto grau de confiabilidade. No Einstein, acabamos de implementar três deles. 

    O primeiro é a tonometria arterial periférica. Trata-se de uma tecnologia portátil, colocada no dedo, para investigar e diagnosticar quadros de apneia obstrutiva do sono. A partir da variação do tônus de pele, ele verifica as alterações do sistema nervoso autônomo que ocorrem durante o sono. É realizado em casa e sem a presença de um técnico.

    Outro exame é a oximetria digital remota. Esse tipo de teste já existe e a inovação tecnológica está na forma como os dados são entregues. O dispositivo, instalado também no dedo, capta os dados de oxigenação do usuário e os monitora. A ativação é feita por um aplicativo no celular. Com ele, conseguimos fazer um bom rastreio de pacientes com risco de apneia. 

    O terceiro aparelho que o Einstein adotou recentemente realiza a actigrafia. Por meio de  um relógio de pulso com um acelerômetro, é feito o registro contínuo do repouso e da atividade da pessoa, por meio dos seus movimentos, para avaliarmos se estão sincronizados com o claro-escuro ambiental. É indicado para quadros de sonolência excessiva, privação de sono e distúrbios do ritmo sono/vigília. 

    FH: Para finalizar, quais são as recomendações para que as pessoas, mesmo as que têm algum distúrbio do sono, possam dormir melhor?

    Em primeiro lugar, a pessoa tem que se conhecer e saber de quanto tempo de sono ela precisa. E como ela sabe disso? Nas férias, quando pode dormir o quanto quiser. Esse autoconhecimento ajuda a não colocar expectativas irreais em cima do sono.

    Além disso, é fundamental ter horários regulares para as atividades. Isso significa fazer as refeições no mesmo horário, se exercitar no mesmo horário, ir para a cama no mesmo horário… Ao final do dia, é preciso reduzir a exposição à luz e às telas, evitar fazer novas atividades ou atividades estressantes e acalmar a cabeça. 

    As pessoas precisam entender que o ideal não é dormir a qualquer custo, por excesso de adenosina no organismo ou com o uso de remédio, mas, sim, dormir saudável. E isso requer a adoção de determinados hábitos.

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