• Como alta demanda, assédio moral e conflitos éticos tornaram profissionais da saúde vulneráveis a transtornos mentais

    Rodrigo Leite é psiquiatra, mestre em políticas públicas e serviços de saúde e assessor do projeto Linha de Cuidado em Depressão pelo Ipads
    Jose Renato Junior | 11 fev 2022

    O momento pandêmico, que ainda assola o mundo, é marcado por ondas sucessivas de contágio, variantes com diferentes impactos na morbimortalidade, sobrecarga dos sistemas de saúde e os efeitos persistentes e crônicos da chamada Covid-19 Longa, com notáveis impactos neuropsiquiátricos como depressão, transtorno de estresse pós-traumático e transtorno mental orgânico.

    Em 2019, o estudo “Global burden of Diseases, Injuries and Risk Factors Study” apontava para o fato de que os transtornos ansiosos e depressivos já eram as condições em saúde mental mais associadas à incapacidade para o trabalho e vida social.

    Esses transtornos já se situavam no Top 25 das principais causas de incapacidade em todo o mundo. No contexto da Covid-19, uma grande confluência de fatores de risco para o sofrimento mental se sobrepôs a esse cenário prévio.

    Intensificou-se uma tempestade de efeitos negativos para a saúde mental: estresse crônico, dificuldades socioeconômicas, luto, isolamento social, aumento do consumo de álcool e outras substâncias, sedentarismo, entre outros, gerando preocupação em pesquisadores e em profissionais e gestores de saúde em todo o mundo.

    Os transtornos mentais estão aumentando? A resposta é: SIM. 

    Estudo publicado em novembro de 2021 na revista Lancet mostrou um aumento significativo da prevalência de transtornos mentais – 27,6% na depressão e 25,6% entre os transtornos ansiosos. 

    Mulheres e jovens foram os grupos mais impactados. Indicadores específicos da Covid-19, como regiões com alta taxa de infecção e grande restrição de circulação social, se associaram a taxas maiores de depressão.

    Thiago Trapé é doutor em Saúde Coletiva e coordenador dos projetos Linha de Cuidado em Depressão e Hub Covid

    Entre os grupos mais vulneráveis, estão os trabalhadores da saúde. 

    Expostos à demanda excessiva, assédio moral, conflitos éticos, dificuldades com pares e chefias, insalubridade e risco de contaminação, essas pessoas saíram do imaginário social como heróis e se materializaram em altas taxas de depressão e pensamentos suicidas.

    Um fato importante é que o tema saiu do armário dos tabus sociais e entrou na agenda do debate público. 

    Nesse sentido, vale pensarmos estratégias rápidas e qualificadas para suprir a necessidade de cuidado customizado para as diversas subpopulações. 

    OS POSSÍVEIS DESAFIOS – E AS POSSÍVEIS SOLUÇÕES

    Nosso foco precisa estar em políticas públicas, compreender o papel da atuação profissional, incluindo seus impactos e responsabilidades, e a organização das práticas assistenciais (na saúde pública e privada), de tal forma que se amplie o acesso e melhore o prognóstico e a qualidade de vida entre os indivíduos com sofrimento mental, sem abdicar de um olhar integral diante dessa população. 

    O campo das políticas públicas de saúde mental sempre foi palco de debates, lutas sociais e aprimoramento constante na composição de leis e normas que regulamentam o setor.  

    Vivenciamos a positiva substituição do modelo asilar e manicomial, que alterou a estrutura de financiamento e conseguiu ofertar acesso a uma rede de cuidados multiprofissionais e humanizados (sem se abster de observar as sabidas insuficiências do SUS), até a regulação do sistema suplementar, obrigando os planos de saúde a cobrirem sessões de psicoterapia, por exemplo.

    Apesar do incremento trazido pelo SUS, ainda lidamos com um sistema fragmentado, focado no cuidado aos transtornos mentais severos e persistentes. No campo da saúde mental do trabalhador, o hiato é mais evidente. 

    No setor público, essa atividade ficou associada à existência dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), com ações ainda incipientes. 

    Do lado da saúde suplementar, a organização continua sendo “da porta para fora” da empresa – ou seja, a institucionalização de programas de promoção e prevenção em saúde mental ou detecção precoce de casos ainda é exceção.

    De modo geral, a área de Medicina Ocupacional se posiciona de maneira pouco atenta ao acompanhamento longitudinal dos trabalhadores. 

    Contudo verifica-se um movimento importante, trazido por organismos multilaterais, grandes empresas, projetos de impacto social e a entrada do debate sobre pilares de ESG (Ambiental, Social e Governança) nas companhias, por exemplo. 

    Identificamos mudanças, que vão desde campanhas informativas apoiadas por grandes instituições até programas de saúde mental para seus trabalhadores.

    Também consideramos fundamental estruturar, em todo e qualquer ambiente, seja institucional ou em uma rede de serviços, uma racionalidade técnica-gerencial que permita ampliar o acesso ao serviço e que se trabalhe a partir de evidências científicas. 

    Trazemos aqui o conceito de Linhas de Cuidado, que devem ser focadas nos transtornos mais prevalentes. 

    Trata-se de um método organizado em rede, que estrutura toda a trajetória do paciente, desde trabalhos de prevenção e promoção a saúde até os protocolos de atendimento em diversos pontos de atenção e mensuração de desfechos, além de agregar maior racionalidade ao sistema e criar itinerários que ajudam gestores e trabalhadores a organizarem práticas fomentadoras de saúde psicossocial. 

    Cuidar da saúde mental é investimento. Agora é a hora!  

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    Thiago Lavras Trapé é doutor em Saúde Coletiva, docente da Faculdade São Leopoldo Mandic e coordenador dos projetos Linha de Cuidado em Depressão e Hub Covid, ambos pelo Ipads (Instituto de Pesquisa e Apoio ao Desenvolvimento Social)

    Rodrigo Fonseca Martins Leite é médico psiquiatra pela USP, mestre em políticas públicas e serviços de saúde pela Universidade Nova de Lisboa, em Portugal, e assessor do projeto Linha de Cuidado em Depressão pelo Ipads

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