• “Teste genético ao nascer vai apontar quem precisa ser acompanhado”, diz pesquisador José Eduardo Krieger

    O médico e cientista José Eduardo Krieger
    Jose Renato Junior | 24 jan 2022

    A hipertensão arterial está presente na vida de José Eduardo Krieger desde que ele nasceu. Não, o médico não tem problemas de saúde, ufa. Ele tem, sim, um pai que estuda o tema desde os anos 1950 – e ele próprio resolveu dedicar-se à pesquisa na área cardiovascular.

    José Eduardo nasceu e cresceu em um campus universitário, o da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, onde o pai, o médico fisiologista Eduardo Moacyr Krieger, fez parte da leva inaugural de professores.

    Crescer em um ambiente cheio de professores e médicos de sucesso teve peso na escolha de José Eduardo, que voltou sua carreira para a pesquisa científica genética voltada aos problemas do coração. 

    Mas, para ter certeza de que a escolha havia sido uma decisão dele mesmo, o médico fez toda sua pós-graduação longe do pai e dos amigos, nos Estados Unidos, em instituições como as prestigadas universidades de Harvard e Stanford. 

    Para sorte da ciência brasileira, ele voltou. Hoje ele é diretor do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração, o InCor, e professor titular de Genética e Medicina Molecular da FMUSP.

    Nesta entrevista, ele conta sobre sua carreira e por que e como a medicina de precisão, esta que é baseada na genética e na personalização do diagnóstico e tratamento, representa uma revolução na prática médica.

    Você é filho de um médico muito respeitado, que era também professor universitário e, por isso, nasceu e cresceu em um campus. O que crescer entre acadêmicos provocou em sua vida?
    Claro que não existe um experimento controlado para eu saber, mas minha impressão é que isso teve uma influência muito grande. Cresci no campus da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, a cerca de 6 quilômetros da cidade. Hoje tem várias faculdades lá e um hospital, e a gente viu isso tudo ser construído. Tinha um campo de futebol lá onde nós, filhos dos professores e dos funcionários, fazíamos umas peladas, descalços e sem camisa, e, de vez em quando, tinha uns jogos mais sérios contra outros times da cidade – nesses a gente usava chuteira. Foi uma infância que é o sonho de toda criança, com cavalo, bicicleta e escola também. 

    À medida que o tempo foi passando, acredito que a influência dos professores de lá, e mesmo depois que eu fiz faculdade, certamente foi fundamental. 

    Foi tão fundamental que quando eu decidi que ia trabalhar nessa área, principalmente em cardiovascular, precisava descobrir se era somente porque eu conhecia tanta gente de sucesso – inclusive uma delas dentro de casa – ou não. Por isso, fiz a opção de trabalhar nos Estados Unidos. Não fiz minha pós-graduação aqui no Brasil. Poderia ter feito, mas provavelmente estaria trabalhando com meu pai. 

    Eu precisava testar, por isso acabei fazendo grande parte de minha formação fora do Brasil: passei quase oito anos nos Estados Unidos, imediatamente após a me formar em medicina. 

    Não fiz residência, fiz o doutorado lá. Queria voltar e fazer residência, mas, em vez de voltar depois de quatro anos, fui fazer o que é chamado pós-doc. E então fui trabalhar com biologia molecular, isso na época do genoma humano sendo sequenciado. Fui para Boston, na Harvard, onde fiquei um ano e meio, e depois mudei com meu chefe para Stanford. Esses dois locais eram universidades-chave não só em pesquisa, mas na pesquisa biomédica ligada à genômica, à genética. Foi uma oportunidade muito grande que tive. A residência ficou para segundo plano, porque eu já tinha ficado oito anos nessa forma de treinamento. Insisti em estar empregado, vamos dizer assim, em um departamento de área clínica, porque queria ter envolvimento com a medicina, mesmo não tendo feito a residência. 

    Por isso inicialmente fui contratado do Departamento de Clínica Médica, aqui da Faculdade de Medicina da USP em São Paulo. 

    Mas meu laboratório sempre foi no InCor, num departamento que reúne a cardiologia, tanto a parte clínica como a cirúrgica, a torácica e as doenças do pulmão. Mais tarde me transferi da clínica médica para o departamento de cardiopneumologia. Estou até hoje aqui fazendo pesquisas populacionais com pacientes e com modelos experimentais – modelos bem pequenos, como por exemplo peixe paulistinha, o zebrafish; modelos intermediários, que são os roedores, camundongos e ratos, e depois modelos bem próximos do homem, que é o modelo suíno. Trabalhamos, claro, também com material, tecidos de modelos experimentais e do homem. Tenho acesso a amostras cirúrgicas e várias amostras que a gente pode pegar dos pacientes aqui do IncCr, material genético e assim por diante. 

    Então você já trabalhava com genética nos EUA muito antes de os estudos aqui no Brasil imaginarem começar.
    Sim, mas eu estava no Departamento de Fisiologia do Medical College Wisconsin, que era um dos melhores do país. Lá, métodos quantitativos eram muito usados para a fisiologia, e tinha muita modelagem. Já eram grupos que praticavam muito a interdisciplinaridade, mas não tinha chegado ainda a genética e a biologia molecular.

    Eu estava lá no fim da década de 1980, e um dos melhores departamentos de fisiologia, que já fazia uso de ferramentas interdisciplinares, não utilizava ainda isso.

    Mais tarde, um dos meus colegas de pós-doc voltou para exatamente levar para Milwaukee esses conceitos de genética. No início da década de 1990, grande parte dos laboratórios, dos departamentos de fisiologia, farmacologia e mesmo de clínica, começou a contar com PhDs treinados em genética e biologia molecula. Isso é muito comum, como é aqui no Brasil, mas naquela época era bastante novo.

    E o que o fez voltar para o Brasil?
    Eu nasci aqui, eu falo essa língua – e eu quero ver as coisas andarem por aqui. Ficou claro desde o início para os meus dois orientadores que eu queria vir para cá. Eles só me falaram que eu tinha que descobrir rapidamente se as coisas dariam certo para mim, porque se eu ficasse muito tempo aqui poderia não me tornar mais competitivo lá. Mas minhas expectativas eram altas e eu estava na hora certa, no local certo. Voltei para o InCor, fui ser professor na Universidade de São Paulo e isso criou as condições que eu precisava. Se eu estivesse em outro lugar, não sei se teria conseguido, se teria a oportunidade de fazer o que faço. 

    O InCor sempre investiu muito em pesquisa, sempre foi interdisciplinar, já havia investimentos muito altos na área de imunologia e havia, obviamente, pesquisa experimental, clínica e cirúrgica. 

    Vim então para contribuir e trazer essa parte de genética e biologia molecular. Continuei fazendo minhas parcerias com os Estados Unidos, mas em momento algum pensei em voltar para lá. Hoje, várias pessoas que eu treino estão indo para lá – e, infelizmente, alguns estão indo por falta de oportunidade aqui. Sempre houve um fluxo para o exterior e sempre vai acontecer, isso é superimportante. O ruim é quando acontece por falta de opção. Isso deixa todos nós muito frustrados.

    É possível evitar essa fuga de cérebros?
    Desde que entramos em recessão no início dessa última década, por volta de 2012, o barco começou a ir para o fundo do mar. E nada tem ajudado. A pandemia evidentemente teve um peso grande, mas ela nos pegou já em uma situação muito ruim. O sistema federal está em frangalhos, e não só por falta de fundos.

    O governo atual tem uma visão muito limitada da importância da educação, da pesquisa.

    Independentemente da orientação política de um governo, se é “direita” ou “esquerda” – o que considero conceitos muito primários –, sempre houve pessoas muito informadas que conseguiam convencer o Legislativo e o Executivo da importância disso. E hoje estamos sem farol, vagando no oceano. Não pense que nos Estados Unidos é diferente, a gente acha que lá é um bando de iluminados, e não é. A classe política é a representação do país, e o país é muito heterogêneo. A educação e a pesquisa e desenvolvimento são motores hoje, ainda mais nesta economia do conhecimento. 

    O senhor falou desse cenário lamentável que vivemos, mas, por outro lado, há centros de excelência fazendo pesquisa. Em que momento estamos hoje aqui no país em relação a esses estudos de genética e biologia molecular?
    Essas são pesquisas muito competitivas. Evidentemente que temos ilhas de excelência no país em áreas como cardiovascular e câncer. O que não temos é massa crítica e volume muito grandes. Veja o que está acontecendo há 30 anos com os Tigres Asiáticos e o Japão e, mais recentemente, com a China. Quando se tem essa combinação de selecionar pesquisadores e fazer investimentos a longo prazo, os resultados começam a aparecer em todas as áreas. A China está fazendo algo que, de certa maneira, era impensável. O avanço que tem, por exemplo, em áreas estratégicas como inteligência artificial a deixou em pé de igualdade com os Estados Unidos. 

    Agora, algo muito importante que está acontecendo aqui no Brasil, a despeito da retração do investimento público, é que estamos tendo um aumento do investimento privado – e isso é fundamental. 

    Isso é novo no Brasil, e não deveria ser. Havia muito pouco investimento privado por uma série de motivos. Um deles é que somos uma economia fechada que eventualmente seleciona mercados ou empresas que não são competitivos e começam a ter facilidades e proteção que não deveriam ter. Padecemos dessa capacidade de desenvolver até mesmo no nosso modelo. Temos que competir internacionalmente. Imagina que formo um aluno aqui no meu laboratório e ele abre uma biotech para fazer terapia celular. Os insumos que ele compra são todos importados. Quando ele está aqui trabalhando no meu laboratório, eu tenho isenção, porque compro isso via Fapesp ou CNPq. Ele não – e isso é caso real. 

    Quando ele sai para competir no mercado, paga o dobro do que eu pago pelo insumo. Para quem está competindo internacionalmente, é inviável. 

    Temos que sair dessa armadilha. Não adianta você ter uma USP, uma Universidade Federal de Minas Gerais, uma Universidade Federal do Rio de Janeiro, um Intituto Tecnológico de Aeronáutica. Estamos formando pessoas que não conseguem ser competitivas, que não têm como brigar lá fora. E, sim, temos bons hospitais, mas são exceções, meia dúzia e grande parte no estado de São Paulo. Eles podem brigar de frente com hospitais de Boston, de Nova York, só que isso não adianta – temos que ter coisas em escala. 

    Em um congresso do Einstein, vi você falando sobre como a medicina de precisão representa uma evolução na prática médica. Pode me explicar por quê?
    Sim, estamos em um momento de revolucionar a medicina. O padrão ouro da medicina até hoje é testar alguma coisa, uma droga ou uma vacina, por exemplo, primeiro em uma quantidade determinada de pessoas para ver se ela é segura. Depois, amplia-se para, digamos, 100 mil pessoas para saber se é efetiva ou não. Foi assim que a gente desenvolveu os anti-hipertensivos, as drogas que a gente usa para diabetes e assim por diante. 

    Só que essa é uma medicina que a gente faz pela média – e isso era bom quando a gente não tinha outras ferramentas. 

    Ainda é o padrão ouro, longe de mim dizer que isso tem que parar, porque enquanto não existir escala para fazer de outra forma é dessa maneira que vai ser feito. Mas estamos aprendendo agora que, enquanto nós todos, você e eu, por exemplo, um é mais moreno, mais baixo e mais magro, os sistemas que controlam o funcionamento do nosso organismo também são assim. Portanto, não é surpresa que quando eu testo uma droga em 100 mil indivíduos e ela mostra que reduzi a pressão arterial em 10%, o que é fantástico, não percebo que, se for olhar um a um, vai ter gente que teve a pressão aumentada pela droga, vai ter gente que não teve efeito algum, vai ter quem tenhaa pressão diminuída mais do que eu gostaria. 

    Mas, na média, ela diminuiu 10%, e é por isso que essa droga, que é chamada “blockbuster”, é usada e prescrita para todo mundo. 

    Isso é o que todo médico sabe e o que está nos nossos guidelines, nas diretrizes. Mas quando o paciente passa aqui na porta e vem falar comigo, até começo utilizando este conhecimento, só que, frequentemente, de cada dez que eu faço isso, seis ou sete voltam e eu tenho que ou mudar a droga ou trocar a dose. Em alguns casos isso é fácil, como, por exemplo, na hipertensão arterial – quer dizer, é fácil fazer, mas é difícil executar, porque uma coisa é você pensar em um consultório clínico, que a pessoa paga ou vem pelo plano de saúde, mas imagina quando se está fazendo isso para milhões de habitantes? Isso é parte da ineficiência do sistema. 

    Tem pessoas que fazem a primeira consulta e só voltam em um ano, mas eu teria que corrigir isso em duas, três semanas. 

    Para mostrar como a medicina de precisão vai mudar as coisas, conto que fizemos um estudo que foi publicado há pouco em uma das revistas de maior prestígio na área de hipertensão arterial, a Hypertension, do American Heart Association. Existe a hipertensão resistente, uma hipertsão, falando em termos leigos, que não é controlada, precisa de mais de quatro drogas para isso. 

    Havia uma percepção de que 20% a 25% dos hipertensos são resistentes, e estudos começaram a ser feitos para verificar isso – o nosso é um deles. 

    Ele é importante, feito no Brasil inteiro com cerca de 1600 pessoas em 27 centros e com drogas que fazem parte da cesta do SUS. Quando a gente começou esse estudo, ele era feito daquela maneira para controlar a média. Em outras palavras: nós primeiro sabíamos que esse paciente era hipertenso, então não podia tirar todas as drogas para limpar tudo e começar a tentar entender o que acontecia. Tivemos que manter pelo menos um diurético. Em três meses e com cerca de três ou quatro visitas, conseguimos determinar, de maneira escalonada, aumentando o número de drogas, quem é resistente e quem não é. 

    Qual foi a nossa surpresa? Quando fizemos isso utilizando estrutura do SUS e drogas que estão na cesta do SUS, olha que bacana, somente 13 a 14% eram resistentes.

    Inclusive isso prejudicou a segunda parte do estudo, porque nela a gente pegaria os que eram resistentes, que estimávamos entre 20% e 25%, e testar a quarta droga para saber qual era a melhor – e já utilizando um conceito de medicina preditiva, porque a gente ia fazer isso com base em algo que tinha medido no primeiro dia em todos os pacientes, que avaliava se ele tinha mais influência do sistema nervoso, o sistema simpático, ou se era por causa de um mecanismo renal, o sistema de renina angiotensina. 

    E usaríamos como quarta droga ou uma que tivesse esse direcionamento: ou para o sistema nervoso ou para o sistema renina angiotensina. 

    O ponto que eu queria colocar para você é que é essa a transição da medicina pela média para a medicina individualizada. Não é só porque estamos usando genômica, é porque estamos tendo cada vez mais mecanismos que permitem individualizar a medicina. A genômica entre nisso tudo junto com os diagnósticos de imagem, toda essa quantidade de dados que a gente consegue monitorar hoje em dia, o expossoma – quer dizer, a exposição a fatores ambientais. 

    Na prática, o que significa essa revolução?
    Um dos desafios é como antecipar riscos. Quando voltei dos Estados Unidos, comecei a fazer palestras sobre genética. Eu falava, por exemplo, para cardiologistas, que nós estamos identificando biomarcadores para poder estabelecer riscos e, no fim da palestra, a maior parte batia palma, mas um levantava e falava: “Não entendi direito o que você falou. Hoje já tenho o Escore de Risco de Framingham”. Framingham foi aquele estudo fantástico feito nessa cidade perto de Boston depois da Segunda Guerra Mundial. 

    Muita gente estava morrendo e eles tentaram ver o estava matando, porque não era infecção. E então descobriram que era doença cardiovascular. 

    Até então, não se sabia que doença cardiovascular matava. E, nessa cidade, começaram a acompanhar todo mundo e a fazer uma série de medidas. Quem teve infarto, quem não teve? E eles passaram a correlacionar com vários fatpres e foi assim que começamos a descobrir coisas que não pensava, como por que faz mal fumar, ficar obeso, ser sedentário, ter a pressão alta. A hipertensão é uma doença, mas também é o maior fator de risco cardiovascular. Tudo isso veio por causa do estudo de Framingham. E tem um algoritmo, o Escore de Framingham, que é baseado nisso. 

    Se pego um paciente no ambulatório do InCor e ele já é doente, esse escore é fantástico para eu estratificar o risco. 

    E o indivíduo que ouviu a minha palestra lá e perguntou por que precisava de um novo escore se já temos Framingham, que me explica 95% do risco do indivíduo, não está errado – ele está incompleto. Se o indivíduo já é doente, o Escore de Framingham funciona. Mas se eu quiser saber, na sala de aula do meu filho de 12 anos, quem vai ter risco cardiovascular, esse escore não vale nada, porque eles ainda não têm alteração de lípides, não têm hipertensão etc. 

    Então veja: mesmo o profissional que trabalha na área tem essa dificuldade de entender. 

    Se eu quiser antecipar e saber na classe do meu filho quem é que vai ter doença cardiovascular ou não, eu sei que, em média, posso dizer quantos vão ter. Mas se você me perguntar quais são, eu não sei. E eu quero saber quais serão eles para poder trazê-los para próximo do sistema de saúde. 

    Hoje, gastamos muito dinheiro quando o paciente já tem doenças. 

    Um paciente desses vai ter uma insuficiência cardíaca, ou seja, o coração vai parar de funcionar, e ele vai precisar de um transplante cardíaco, o que é uma situação muito ruim e muito cara. Ou ele vai ter, por causa de uma dislipidemia ou um infarto – e, quando ele entra no sistema de saúde, é muito tarde. Se eu puder saber de antemão que ele tem isso, muito melhor. 

    Vai chegar um dia que nós vamos rastrear todo mundo desde a hora do nascimento para começar a separar quem que tem que estar mais próximo do sistema de saúde e quem não precisa. 

    Uma pessoa que sei que tem um problema genético precisa ser vista mais vezes, enquanto a outra pode vir uma vez a cada dois anos, por exemplo. Não precisei mudar nada: o dinheiro que eu tinha, eu agora aloco diferente o recurso. O sistema de saúde amanhã, seja ele privado ou público, vai ter que ser feito nestas bases. Se a gente estiver pensando apenas no “eu”, não vai dar certo, porque não tem dinheiro que pague. É como vacina. Quem diz que não vai tomar não está causando um problema só para si. É um problema para a pessoa porque vai pegar a doença, mas também para você, para mim, para todos, porque ele vai ajudar o vírus circular. Ele não está entendendo que a decisão dele afeta você.

    Não é uma decisão individual.
    Não. A não ser que a pessoa vá morar em uma ilha deserta. À medida que estamos pensando no desenvolvimento da medicina, temos que pensar igualmente nos novos contratos sociais. Por exemplo: imagina se eu souber, na sala de aula do meu filho, quem vai ter uma doença e quem não vai ter. Se o sistema de saúde for privado e quiser escolher o que tem menos risco, esse indivíduo ou vai ter que pagar mais caro ou vai ficar fora. Então, nós vamos ter que ter um contrato social que preveja que é melhor para a sociedade saber quem tem risco maior ou menor, mas que essa pessoa não pode ser penalizada. 

    Você só pode pensar na medicina do futuro com novos contratos sociais, caso contrário não vai dar certo.

    Se você tem uma doença que sabe que vai precisar da assistência terciária, quaternária, desde seus 21 anos, mas alguns dos seus familiares e alguns dos seus amigos não, como vamos fazer um sistema pelo qual você rapidamente vai poder ter acesso sem ser penalizado? Você não vai poder ser eliminado de seus processos seletivos de emprego também por isso. O empreendedor que estamos esperando é o que vai proporcionar isso sem tentar ser espertinho, sem qurer ter acesso a essas informações para eliminar pessoas de alto risco. 

    O que hoje já pode ser apontado como casos reais de medicina individualizada?
    Já há muitos exemplos em oncologia em que, com base nas características genéticas do indivíduo, já sei se ele vai se beneficiar ou não de determinada droga. Há casos em que a droga quase só é utilizada junto com o teste genético. Mas existem outras coisas que estão sendo feitas para diagnosticar. Aqui no InCor e em vários outros locais, há conjuntos de pacientes com uma doença chamada cardiomiopatia hipertrófica. Frequentemente ela acontece em família, mas às vezes o defeito é somático, que não é aquele herdado, mas que aconteceu ao longo do seu desenvolvimento. 

    Hoje, temos ferramentas que permitem fazer essa genotipagem. 

    Até alguns anos atrás a gente usava painéis de marcadores. Então, no começo, havia meia dúzia de genes, que eram os mais prováveis de haver as alterações, mas houve muita evolução tecnológica. Mais tarde, desenvolvemos, junto com o grupo Fleury, um chip com cerca de 160 genes que afetam várias doenças cardiovasculares. Depois, aqui no laboratório, passamos a usar um chip que tinha mais ou menos 180 marcadores. Hoje, junto com a Beneficência Portuguesa de São Paulo, temos um projeto que começou em 1º de janeiro e vai acontecer pelos próximos 24 meses de medicina de precisão em câncer e doença cardiovascular – eu coordeno esta parte. Fomos daquele chip de 180 marcadores para sequenciar o genoma como um todo. São todos os 23 pares de cromossomos e os três bilhões de pares de bases. 

    Os médicos brasileiros já estão pedindo testes genéticos para auxiliar seus diangósticos e tratamentos? 
    O valor do teste cada vez está caindo mais. O que está por trás da incorporação dessa tecnologia ao sistema de saúde é toda a parte analítica – e tirar as barreiras existentes para o médico fazer essa consulta. Não é preciso um geneticista, e sim um cardiologista que vai fazer isso.

    O desafio, portanto, não é como eu vou trazer um geneticista clínico para trabalhar com ele – é, sim, como eu vou empoderar o médico.

    Ele tem que saber quando pedir o teste, o que significa o resultado daquele exame e, mais importante, quando é preciso ter aconselhamento genético. Hoje o médico tem até medo de receber um teste desse. Ele está acostumado a receber exame que conhece, sabe a ação que precisa tomar. Fazer aconselhamento genético, conversar com o paciente, chamar familiares, isso já começa a ficar complicado para um cardiologista. 

    Quando é preciso fazer um exame genético? Todo mundo que tem um problema cardíaco, por exemplo, precisa de um teste?
    Não. Isso estamos aprendendo. Algumas coisas já sabemos bastante, outras não ainda. Esse projeto com a Beneficência Portuguesa e o Ministério da Saúde, por exemplo, é focado em áreas que a gente já conhece: cardiomiopatias, como a cardiomiopatia hipertrófica, problema que deixa o coração hipertrofiado, como se fosse de um atleta, mas sem a necessidade – então é porque tem algo errado. Muitas vezes, essa coisa errada é genética. Em alguns casos, inclusive, ela é herdada.

    O preço está caindo tanto que é mais fácil já sequenciar todo o DNA para descobrir isso.

    Outra coisa que sabemos que o teste é útil são para alterações do ritmo cardíaco, as arritmias, e de doenças congênitas, aquelas que as crianças nascem com a patologia cardíaca – além dos distúrbios de lípides, de gordura, que já conhecemos vários. Então, essas quatro doenças são algumas que já estão saindo do domínio da pesquisa para a prática.

    Isso é uma evolução constante, certo? Quero dizer, muito em breve outras doenças vão estrar para esse rol?
    Sim. Por exemplo, quando eu faço uma análise em um câncer, eu analiso primeiro o material genético do paciente, entre aspas, com uma amostra de sangue dele para pegar o genoma que está no linfócito. E tenho que ter uma amostra também do tecido, então é preciso uma biópsia. Comparo o sequenciamento do genoma da amostra do paciente versus a do tumor dele, porque às vezes a mutação só está no tumor. Em neoplasias isso já é um conceito aceito, e está começando a ser percebido também, em uma minoria de casos, em doença cardiovascular. Isso é bem novo, ainda não está sendo feito de rotina. 

    O que podemos esperar do futuro em relação à medicina de precisão?
    Vamos ficar só na doença cardiovascular por um motivo muito simples: um terço das mortes no Brasil e no mundo ocorre por causa das doenças cardiovasculares e, segundo todas as previsões para as próximas duas décadas, isso deve continuar assim. 

    Imagina que hoje você tem um infarto, teve o melhor atendimento e foi ao melhor hospital, como o InCor. 

    As diretrizes dizem que uma série de drogas que nós temos são fantásticas, e são baratas, para proteger o seu miocárdio. Só que, se eu proteger demais, posso ter um efeito colateral. E lembra que fiz o teste para 100 mil pacientes, e não para você especificamente. Você está na média. Quando você sai daqui, eu dou essa droga da média. 

    Mas vamos dizer que você precisava de mais droga, então você sai do InCor sem proteção completa. 

    Não posso aumentar sua dose porque eventualmente um dos efeitos colaterais é baixar muito sua pressão, o que pode provocar um AVC isquêmico e seu coração piorar. Como vou saber disso? Mando você voltar daqui a três meses? Não, é muito tempo. 

    E se eu colocar uma pulseirinha que nós estamos desenvolvendo aqui, por 25 dólares, com inteligência artificial para monitorar sua pressão arterial 24 horas por dia? 

    Outra coisa: ela custa 25 dólares. Estamos testando isso com uma parceira, a FoxConn – é dinheiro privado para desenvolver tecnologia. O projeto é com inteligência artificial, que usamos para fazer wearables. E você não vai ficar ansioso vendo a sua pressão, porque ela não marca para você, apenas mostra as horas. Os dados vêm aqui para o InCor. Alguém vai telefonar paa você ou mandar uma mensagem para avisar que é preciso aumentar a dose. Assim, da média eu sigo para você. 

    Vamos imaginar um caso mais sério ainda: seu infarto foi muito grave, dei todas as drogas e não resolveu.

    Você está com insuficiência cardíaca, e agora é bad news. Bad news para você, para sua família, para o sistema de saúde, porque você vai entrar e sair de UTI. Será que é mais inteligente você ir para a UTI? E se você fosse para um day hospital primeiro, próximo à sua casa? Imagina que houvesse um ambulatório regionalizado, que você não fosse internada lá. 

    Em vez de entrar em uma UTI, que é cara, você vai simplesmente algumas vezes por semana para lá, porque estou controlando sua saúde com os wearables: além da pulseirinha, uma balança conectada com ela. 

    Se seu peso começa a aumentar, pode ser que esteja retendo água – o que significa que seu coração ficou pior. É isso que vai fazer você ir para UTI, só que, em vez de ir para a UTI, você vai primeiro para essa linha de cuidado que é intermediária, muito mais barata para o SUS, para a operadora de saúde, para a sociedade. E sua qualidade de vida é muito melhor, porque você não ficou tão doente. Em vez de 100 pessoas irem para a UTI, mesmo porque não tenho lugar para 100 pessoas, vão apenas cinco. Isso é eficiência.

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