A versatilidade dos tipos de administração da cannabis para tratamentos de diversas doenças é uma aliada na prescrição da planta. Mas também pode ser uma vilã, caso o profissional da saúde não conheça a fundo os efeitos, os tipos de produtos disponíveis e até mesmo as interações com outros medicamentos.
A enfermeira Marcella Tardeli, gerente de cuidado coordenado na Cannect, ecossistema digital que conecta pacientes, médicos, instituições de saúde, pesquisadores e fornecedores para a democratização do uso da cannabis medicinal, explica:
“A disponibilidade da via do paciente, adaptação ao medicamento e o custo do produto formam a tríade para que o médico escolha o melhor jeito de prescrever a cannabis.”
Graduada e mestre em enfermagem pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Marcela tem especialização em enfermagem em Oncologia pela Fundação Antônio Prudente e pós-graduação em cuidados paliativos e psico-sócio-oncologia pelo Instituto Pallium Latinoamerica – Universidad del Salvador (Argentina).
Cada vez mais acessíveis, os medicamentos à base de cannabis podem ser administrados de diversas maneiras. Os mais populares são os óleos, divididos entre os full-spectrum, que contêm todos os fitocanabinóides da planta, incluindo CBD e THC, além de terpenos e canaflavinas; os broad-spectrum, que trazem todos os elementos do anterior, menos o THC; e os isolados, que apresentam apenas um canabinóide na composição.
Os medicamentos à base de óleo são maioria porque os fitocanabinóides são lipossolúveis. Desta forma, o prazo de validade é mais longo e os valores mais acessíveis. Seu uso é sublingual e para que o efeito seja mais efetivo, o paciente deve ficar cerca de 30 segundos com o produto na boca antes de engolir. O efeito começa em cerca de meia hora.
“Embaixo da língua temos uma mucosa rica em capilares que absorvem o medicamento e o jogam direto na corrente sanguínea. Assim ele não sofre a degradação que haveria na passagem pelo trato gastrointestinal. O medicamento chega mais rápido e puro ao sangue”, detalha Marcela.
A dosagem não é universal e deve respeitar a análise clínica, sintomas e interações medicamentosas. Por isso, o acompanhamento individual do prescritor é importante para avaliar se o meio e a dosagem estão adequados para o tratamento.
“Os óleos são importantes para uma titulação de dose mais afinada até que o paciente chegue na dose terapêutica. O tratamento se inicia devagar e vai progredindo de maneira segura, além de oferecer poucos ou nenhum efeito adverso”, informa a enfermeira.
Outra forma oral de consumo do medicamento é por meio de cápsulas. Ainda não tão demandada pelos médicos, podem ser utilizadas quando a dose é estabilizada, por exemplo.
Por serem mais fáceis de transportar e não terem gosto, são uma opção relevante. As cápsulas demoram, em média, 60 minutos para fazerem efeito – mas eles podem durar horas.
Assim como as cápsulas, os prescritores podem também indicar as gummies, que trazem a dose em forma de uma balinha de goma e podem ser aplicadas mais facilmente em crianças e adolescentes, por exemplo.
Esta forma também pode ser útil para complementar tratamentos contínuos, como o da esclerose múltipla, onde o paciente pode usar as gummies de THC puro para auxiliar nas crises de espasticidade.
Outro uso que tem se popularizado, principalmente em países com a legislação mais avançada para o uso da maconha, é o tópico, por meio de cremes, adesivos, bálsamos, bomba de banho, gel, loção e pomada, entre outros.
Por oferecer um efeito localizado, este modo de usar tem ganhado espaço entre esportistas, uma vez que as funções anti-inflamatórias e antioxidantes de alguns canabinóides, como CBD, CBG, CBC e CBN atuam em dores musculares e das articulações. Pacientes com psoríase, dermatite atópica e eczema também têm se beneficiado desta forma de emprego da cannabis.
“Qualquer forma de administração precisa levar em conta as particularidades do paciente. Além de cada um reagir de uma forma, uma vez que o sistema endocanabinóide é diferente em cada pessoa, é preciso avaliar o que faz sentido no momento”, avalia a profissional.
“Existem protocolos norteadores, mas não dá para usar a mesma dose, concentração e administração com todo mundo, pois cada corpo responde de um jeito, em seu tempo.”
Mesmo que pouco divulgado, já é possível importar as flores de maconha para o uso medicinal, seja só com CBD ou mesmo com um teor controlado de THC.
Por ser utilizada fumada ou vaporizada, este uso ainda é controverso, até porque os vapes são considerados ilegais no Brasil.
“Por oferecer um efeito rápido, o vape atende muito bem alguns casos, como crises de ansiedade e dores agudas. Porém a combustão pode ser prejudicial ao pulmão e isso acaba sendo um obstáculo para esta administração”, diz Marcela.
Ela também comenta que, na forma vaporizada, as substâncias da planta entram diretamente na corrente sanguínea por meio dos pulmões e os efeitos aparecem em minutos. Ao mesmo tempo, contudo, passam mais rápido do que nas aplicações orais, por ingestão.
De acordo com a profissional, outra opção interessante de uso da flor medicinal é para pessoas que já fazem uso da planta para ajudar em casos de insônia e desconfortos causados por tratamentos oncológicos. “Por serem autorizadas pela Anvisa, o acesso com prescrição é feito por vias legais. Além disso, é possível controlar a dose de THC e ter conhecimento da procedência”, afirma.
Marcela alerta que, de qualquer forma, é sempre preciso avaliar os riscos causados pela combustão e a possibilidade de migrar o uso para outro modo menos agressivo aos pulmões. “Na utilização para dor, por exemplo, é importante que o paciente faça corretamente o uso sistemático da cannabis para que os sintomas diminuam e não seja preciso usar doses de resgate ou de emergência”, explica.
A administração de cannabis por meio de supositórios tem trazido bons resultados também no dia a dia das prescrições. Por liderar um time de enfermeiros que fazem o acompanhamento terapêutico dos pacientes que utilizam a plataforma da Cannect, Marcela observa de perto os usos que trazem mais sucesso para os tratamentos.
Supositórios vaginais e anais oferecem uma via interessante para os tratamentos, uma vez que são regiões de mucosas e permitem uma absorção rápida e local. “Mesmo ainda sem muitos estudos específicos, o uso anal, por exemplo, pode ajudar a controlar os sintomas de doenças inflamatórias intestinais. Até mesmo para cólicas menstruais o uso é indicado”.
A profissional esclarece que estas vias de administração também podem oferecer ganhos para a vida sexual quando usados como lubrificantes. “Além de trazer mais conforto por diminuir o atrito, tem uma ação anti-inflamatória importante”.
Além dos supositórios, a enfermeira também elenca outros usos poucos conhecidos, mas que já estão disponíveis no mercado pelo mundo e possíveis de importação legal com o aval da Anvisa. Entre eles sprays e até colírios.
Prescrever cannabis com autoridade e segurança não é uma tarefa fácil. Os cursos para prescrição são livres para médicos e outros profissionais da saúde, como dentistas e veterinários. Porém, todo medicamento importado precisa de autorização da Anvisa ou receita controlada no caso da aquisição em associações de pacientes.
As variadas possibilidades de administração também acabam confundindo médicos e pacientes. Para tornar esse processo mais assertivo, uma das opções é a realização de testes genéticos que avaliam a velocidade de metabolização do CBD e do THC, risco de obesidade (o THC traz como efeito colateral o aumento do apetite) e os riscos de adição, isto é, o quanto a pessoa está propensa a se tornar dependente daquele produto.
“Os testes podem ser aliados na escolha da melhor via de administração, uma opção para nortear o tratamento e tornar a prescrição mais afinada e equilibrada, diz Marcela.
“Se o prescritor sabe que o paciente tem metabolização acelerada de determinado canabinóide, não adianta ele prescrever um produto que vai metabolizar rápido e o organismo nem vai ter tempo de sentir o efeito desejado”, finaliza.