• “O mundo está envelhecendo e não há nada mais moderno do que ficar velho”, diz gerontólogo Alexandre Kalache

    O médico Alexandre Kalache (Foto: Divulgação/Kassia Macedo e Verônica Bertoni)
    Jose Renato Junior | 18 out 2021

    Com uma longeva carreira dedicada à gerontologia, o médico epidemiologista e pesquisador em saúde pública Alexandre Kalache passou os últimos 46 anos buscando maneiras de tornar o envelhecimento mais digno e saudável nos quatro continentes. 

    Filho de uma família multicultural, ele levou os aprendizados das conversas com os avós e a pluralidade de olhares e saberes que efervesciam em sua casa em Copacabana, no Rio de Janeiro, como pontapé e amuleto em sua missão. 

    Seu currículo, assim como a lista de países onde já trabalhou e sua paixão pela área, são extensos. 

    Kalache é PhD em epidemiologia pela Universidade de Oxford, fundador do Centro Internacional de Longevidade Brasil, codiretor da Age Friendly Foundation e por 13 anos foi responsável pelo Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da Organização Mundial da Saúde (OMS). 

    Em 2002, ele esteve à frente do Marco Político do Envelhecimento Ativo e, três anos depois, liderou a iniciativa global Cidades Amigas do Idoso.

    Além disso, fundou a Unidade de Epidemiologia do Envelhecimento da Universidade de Londres e criou o primeiro mestrado em Promoção da Saúde da Europa. 

    Entre as diversas instituições com as quais já colaborou, Alexandre foi embaixador da mais influente organização para o envelhecimento, a HelpAge International, e fez parte do Conselho para Envelhecimento do Fórum Econômico Mundial. 

    Hoje, ele é professor em cinco universidades no exterior, integra o conselho de várias das instituições por onde passou e trabalha pela adoção da Convenção das Nações Unidas para o Direito das Pessoas Idosas.

    Em uma deliciosa conversa com Future Health, Kalache contou quais são os pilares essenciais para envelhecer bem, o que o motivou a enveredar pelos estudos sobre longevidade, onde o Brasil está errando com seus idosos e que quer, sim, ser chamado de velho, afinal envelhecer é uma oportunidade.


    O INÍCIO: MEDICINA PARA FAZER SAÚDE PÚBLICA

    “Fui fazer medicina sabendo que eu não queria ser um médico tradicional, eu queria fazer saúde pública. O Brasil era muito jovem e o que predominava eram doenças infecciosas. Minha primeira pós-graduação foi em doenças tropicais, infectologia. Até que fui para a Inglaterra fazer uma pós-graduação em saúde pública. Cheguei a um país muito envelhecido. Foi a primeira coisa que eu percebi, saindo do Brasil que tinha só 5% da população com mais de 60 anos. 

    Então li um artigo científico do The Lancet dizendo que 83% dos geriatras na Inglaterra vinham de países subdesenvolvidos.

    E fiz um inquérito com todos os membros da Sociedade Britânica de Geriatria. Só uma pergunta dividiu o grupo. Os 800 membros se dividiram em duas metades: quem tinha satisfação no trabalho e quem não tinha. Essa única pergunta que distinguia os dois grupos era quem havia tido contato íntimo com familiares idosos na infância e na adolescência, de preferência morado debaixo do mesmo teto. Isso é o que trazia uma familiaridade e uma atitude positiva com as pessoas mais velhas. O resto não tinha valor.” 

    A RELAÇÃO DO CONTATO PRÓXIMO COM OS AVÓS E O INTERESSE

    “Em paralelo, fiz uma outra pesquisa medindo as atitudes de estudantes de medicina em relação ao cuidado, à morte, à perspectiva de se tornar um geriatra. Fui estudando as atitudes de grupos antes e depois de passarem um mês trabalhando em uma enfermaria geriátrica. Em todos os grupos, as atitudes eram melhores antes do que depois. 

    Ou seja, ter passado um mês em uma enfermaria geriátrica era contraproducente, eles ficavam menos interessados nos cuidados com o idoso. 

    Aí quis ouvi-los, saber o porquê. Em todos os grupos, saía a mesma coisa: ‘Fomos fazer medicina para salvar vidas e a gente aqui com esses pacientes fim de linha, com patologias múltiplas, confusos, deprimidos, abandonados pela família. A gente tem dificuldade de entender o que eles falam, eles têm dificuldade de entender o que nós falamos. Para muitos de nós, essa foi a primeira vez em que sentamos para conversar com um idoso. Nós não temos familiaridades nem com os nossos avós’. De novo, batia a mesma coisa. 

    As atitudes começam muito cedo e eles, não tendo o referencial de uma pessoa idosa, não se interessavam por aquela morte iminente que viam à volta.

    Tudo isso bateu na minha cabeça: isso está falando comigo! Eu tive contato íntimo com os meus avós. Mais que meus avós, eu tinha uma porção de avós postiços. A minha avó tinha 13 irmãos, o meu avô, 17. Eu tinha velho pra tudo que era lado, e eu gostava. Venho de uma família multimediterrânea, meus avós nasceram em países diferentes: Portugal, Itália, Grécia e Líbano. Era fascinante! Eu ouvia as histórias como se estivesse com uma National Geographic ali, ao vivo. Lindas fábulas, histórias e muita tradição oral. Eles falavam à beça. Idoso gosta de contar história, se tiver alguém para ouvir. Como eu estou fazendo agora.” 

    ENVELHECIMENTO NÃO É SÓ UMA QUESTÃO DE PAÍS RICO

    “No início da minha carreira, só se falava que envelhecimento era um assunto que interessava aos países desenvolvidos. Mas comecei a perceber que seria um fenômeno global. Eu via que as pessoas já estavam vivendo mais e a minha aposta era de que cada vez as mulheres teriam menos filhos. E o número de crianças, adolescentes e jovens adultos diminuiria. Isso estava acontecendo nos países ricos e iria acontecer no Brasil, mas de forma mais rápida. E foi isso. 

    Em 1975, o número médio de filhos por mulher era de 5,8. No ano 2000, já estava abaixo da reposição. 

    Quando casais têm dois filhos, a população não se repõe. Então, nós comprimimos o processo de envelhecimento em uma geração, ao que os países desenvolvidos levaram décadas para fazer. Na França foram necessários 145 anos para dobrar a proporção de idosos de 10% para 20%. Nós estamos no meio do caminho. Vai dobrar de 10% para 20% de 2011 para 2030. Em 2050, será mais de 30%, porque as pessoas estão vivendo mais e a base da pirâmide vai encolhendo. 

    Quando eu nasci, a expectativa de vida era de 43 anos e antes da pandemia já estava em 77. 

    Nós envelhecemos na contramão dos países desenvolvidos, que primeiro enriqueceram para poder envelhecer. Nós estamos envelhecendo mais rapidamente, com muito menos recursos, com menos estrutura familiar, as famílias estão cada vez mais nucleares – é pai, mãe e um ou dois filhos, ou não têm pai, porque foi assassinado, está preso, morreu. É um contexto muito desafiador. E eu tive a sorte de perceber isso muito jovem e sendo um apaixonado por velho. Não gosto de velho só agora que eu sou velho, não. Eu sempre gostei.”

    AS TRANSFORMAÇÕES NOS CUIDADOS COM IDOSOS

    “Quando eu era estudante de medicina, os velhos ficavam nas enfermarias gerais, não existia um saber aprofundado. Eram tratados como outros adultos e acabavam intoxicados com medicações que não estavam adequadas, os diagnósticos não eram apropriados, não havia conhecimento. Depois da faculdade acabei não voltando pro Brasil, porque eu ganhei um prêmio pela minha dissertação de mestrado e a Universidade de Oxford me convidou para trabalhar como professor assistente de saúde pública. Lá fiquei por quase 8 anos. 

    Em paralelo ao trabalho como professor com foco em envelhecimento, fiz meu PhD sobre envelhecimento. 

    Quando terminei, voltei para Londres e comecei a dar cursos em diversos lugares do mundo. O resultado foi que, em 1994, fui convidado para ser o diretor do departamento de Saúde e Envelhecimento da OMS [Organização Mundial da Saúde]. Quando saí de Genebra em 2008, fui para a Academia de Medicina de Nova York, criar uma unidade voltada para envelhecimento e para colocar em prática um projeto que eu tinha concebido na OMS, a Cidade Amiga do Idoso. Este século vai se caracterizar por dois fenômenos demográficos em paralelo: envelhecimento e urbanização. 

    Cada vez mais teremos velhos morando em cidades e as cidades têm que estar preparadas.

    De Nova York fui para a Austrália, mantendo sempre os laços com Londres e Espanha, onde sou professor de saúde pública em Granada. Quando eu olho pra trás, já são 46 anos dedicados ao envelhecimento. E eu continuo mais apaixonado que nunca, porque é uma área que está sempre em renovação. O envelhecimento é um cruzamento entre antropologia, sociologia, medicina, tem a parte biomolecular, apresentação clínica, política… tudo! O mundo está envelhecendo e não há nada mais moderno do que ficar velho. E eu só tenho a agradecer por ter tido o privilégio de ver essa área se desenvolver quando ninguém falava sobre ela em uma perspectiva global.”

    OS PILARES DO ENVELHECIMENTO SAUDÁVEL

    “A definição de envelhecimento ativo é o processo ao longo da vida de otimizar as oportunidades para quatro coisas importantes. A primeira é saúde, isso é universal. O segundo é conhecimento. Se você não tem conhecimento, você não pode participar da sociedade, você vai perder oportunidades, ainda mais agora com a tecnologia explodindo. Conhecimento significa aprender a aprender, sempre. Com saúde e conhecimento, você abre a porta para o terceiro pilar, que é a participação. Você tem as ferramentas necessárias para participar da sociedade. 

    A saúde é criada no contexto do dia a dia, onde você mora, onde você trabalha, como você se locomove, como você se entretém, como você brinca, como você ama.

    Quando isso falha é que você precisa de um profissional da saúde. A participação gera capital, e capital social é fundamental. E o último pilar é segurança. Se tudo der errado, o que você tem? Pode ser o básico, um teto na cabeça e comida na prateleira. O horror da velhice ao longo da história é envelhecer sem saber se você vai ter algum grau de proteção, de segurança. Vimos isso durante a Covid. A pandemia não inventou nenhuma nova mazela, apenas aflorou. 

    Em um país extremamente desigual, envelhecer para quem mora no Jardins ou no Alto Leblon é maravilhoso. Mas não é a realidade de como se envelhece por aqui. 

    Você não chega aos 60 para envelhecer, é um processo. Nas camadas mais pobres da sociedade, a capacidade funcional de uma pessoa de 50 anos é menor do que a minha aos 76. E tem outra coisa que é fundamental: quando se envelhece você sente que precisa deixar um legado. Você não está preocupado em competir, mas quer ser lembrado por alguma coisa boa que tenha feito. Isso é o que me motiva hoje.”

    A VELHICE COMO SOMA DE TUDO O QUE FOI NA VIDA

    “Eu não faço questão nenhuma de não ser chamado de velho. Pode me chamar de velho. Ô, careca, barba branca, rugas! Sou velho. No Brasil, velho é sempre o outro, nunca eu. Enquanto a ficha não cai, você não ressignifica e quer se comportar como se tivesse 30 anos. Quando eu tinha 30 anos, fazia coisas que eu não posso fazer hoje – e nem quero. E hoje posso fazer coisas que não podia aos 30. É preciso ressignificar as etapas de vida e é isso que eu procuro transmitir. É uma tragédia um país tão rico ser tão desigual. É revoltante ver colegas meus que roubam respiradores, que tiram dinheiro de centros de tratamento intensivo, essa ideologia da anticiência. 

    Meu Deus, presidente, como é que o senhor não vai se vacinar, visitar um hospital público, demonstrar sua empatia? É um compromisso com a morte. 

    E o mais difícil é que um psicopata não se cura, isso é da alma. Desculpe, não estava pensando em falar em política aqui, mas a política está em todo o lugar. Eu fui ativista quando jovem. Criei a Associação Nacional dos Estudantes de Medicina durante os anos de chumbo. Fui da primeira turma a entrar na faculdade depois da ditadura começar em 1965. Se eu não me calei quando jovem, como é que vou me calar agora? Você é na velhice a soma do que você sempre foi.”

    ENVELHECER BEM É MAIS DO QUE TER COMIDA NO PRATO

    “A Covid mostrou que o Brasil, assim como o resto do mundo, vive a pandemia da solidão das pessoas idosas. A solidão é um dos problemas graves nos países desenvolvidos, onde a proporção de idosos é muito mais alta. E não é apenas viver só. Você pode estar cercado de pessoas e se sentir só. É difícil dizer, porque nem censo esse governo faz, mas a gente calcula que mais de 4 milhões de pessoas idosas vivam sozinhas. E mais que o dobro desse número viva só com o cônjuge, muitas vezes doente. Muitas vezes é uma mulher idosa cuidando do marido com Alzheimer, isso é solidão, cansaço, exaustão. O envelhecimento não está bem equacionado mundo afora, só que os países desenvolvidos têm recursos para responderem com intervenções e serviços. E nós aqui na nossa pobreza estamos levando muito mal.”

    A EPIDEMIA DO IDADISMO PELA QUAL PASSAMOS

    “Nós vivemos uma epidemia do idadismo. Eu não gosto de você porque você é velho. Todos os ismos, como sexismo, capacitismo, racismo, eles têm a mesma origem. São 4 ‘is’. O primeiro é de ‘ideológico’: eu não gosto de você porque porque você é negro, porque você é gay. É uma coisa grupal, tribal. O segundo ‘i’ é de ‘institucionalizar a ideologia’, promovendo práticas e políticas que vão dificultar o seu acesso à saúde. ‘E daí? Deixa morrer, você já é velho mesmo. Nós ex-atletas não sofreremos nada, não passará de uma gripezinha’. O terceiro ‘i’ é de ‘interpessoal’, aquilo se transforma num discurso, numa relação interpessoal: os comentários, as piadinhas constrangedoras que minam a autoconfiança e autoestima. E o último ‘i’ é de ‘internalização’, que é o objetivo da ideologia: fazer com que a pessoa acredite naquilo. 

    E eu acredito que existe ainda um quinto ‘i’ que é muito nosso, que é o da ‘inequidade’. Onde prevalece a desigualdade, há um campo aberto para tudo isso florescer. 

    Isso custa muito caro para a pessoa idosa, que se vê como um traste, peso, transparente, invisível. Nós somos muito hedonistas. Um país de beleza e juventude eternas. Não pode ter rugas, coloque botox, vá pra academia, fique sarado. Se você fugir desse padrão, você está condenado a sofrer. A gente tem medo do que desconhece e medo da decadência que você associa ao envelhecimento. Você não consegue ver o copo meio cheio, não ressignifica a sua vida e acha que vai conseguir fazer aos 80 aquilo que você fazia aos 20. Você vê o velho sempre como o outro, nunca cai a ficha. E você não vê algo que acontece há mais de dois mil anos: o jovem tem diante de si o desafio de talvez envelhecer. Eu, então, estou em vantagem, já passei por esse desafio. Como venho de uma família de longevos, tenho que me preparar para viver bem até os 100 anos. O que vier depois é lucro.”

    A IMPORTÂNCIA DA CULTURA DO CUIDAR

    “Minha mãe foi uma mulher belíssima, meus amigos sempre a chamavam de baronesa. Ela morreu em dezembro e foi a centenária mais bem cuidada do planeta. Quando fez 100 anos, eu estava voltando de Nova York e comprei uma tiara de presente. Tinha que voltar para o centenário da minha mãe, não podia perder por nada. Cheguei bem cedinho com a caixa cheia de papel de seda, um laço e disse: 

    – Mãe, hoje é o seu aniversário, sabia?
    – Não, ninguém me contou nada.
    – Hoje é seu aniversário especial, sabe quantos anos a senhora está fazendo?
    – Acho que é 50?
    – Não, é um pouquinho mais.
    – Sessenta?
    – Não, mãe, você está fazendo 100 anos.
    – Eu não, você que está.

    Aí eu falei que ela não seria mais a baronesa, entreguei o presente, ajudei abrir as três caixas até chegar na tiara. Disse que ia coroá-la minha rainha. Naquela idade, já era uma rainha. Ela estava animada, foi só colocar a tiara na cabeça que mudou de cara. Eu perguntei se não tinha gostado do presente e ela respondeu: 

    – É que eu preferia ser princesa. 

    Veja só o que se ganha quando se ouve uma pessoa idosa com demência. Para que ser rainha? Muita responsabilidade. Ela queria era ser princesa, ter tapete vermelho, ser mimada. A importância da cultura do cuidar é outra bandeira que eu tenho, não é essa obsessão do curar. Homem, então, conjuga o verbo assim: ‘tu cuidas, ele cuida, vós cuidais e eu não tenho nada a ver com isso’.

    Quando eu era garoto, as mulheres ainda estavam começando a entrar no mercado de trabalho, e um batalhão delas ficava em casa cuidando dos idosos.

    Na época era por pouco tempo, porque a medicina não tinha muitos recursos. Hoje, o cuidado se alonga. E, para preencher com qualidade de vida, você tem que se dedicar muito ou ter condições para terceirizar esse cuidado. Confesso que nunca passei uma noite sem dormir para cuidar da minha mãe, mas sempre soube que a dignidade com que eu tratasse as cuidadoras seria a dignidade com que a minha mãe seria tratada. E a classe média não está nem aí pra isso. É preciso cuidar de quem está em volta, cuidar da comunidade, cuidar de uma forma abrangente.”

    O FUTURO IDEAL DA LONGEVIDADE

    “Gostaria que as pessoas idosas pudessem viver com dignidade, autorrealização, cuidado e serem respeitadas não só por serem idosas, mas por serem seres humanos. Se eu lesse isso amanhã nos jornais, ficaria feliz. Missão cumprida.”

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