• “A medicina nuclear pode ser aplicada em vários campos, da cardiologia à neurologia”, afirma especialista George Coura

    George Coura é médico nuclear
    Jose Renato Junior | 6 abr 2022

    Exame não-invasivo de diagnóstico por imagem, a cintilografia é realizada com a aplicação de uma injeção na veia do paciente de uma substância chamada radiofármaco.

    Essa é uma solução com uma pequena dose de substância radioativa, diluída em soro fisiológico, que se distribui pelo organismo da pessoa examinada – e, de acordo com a sua natureza química, fixa-se principalmente no órgão que o médico quer estudar. 

    As radiações, que não causam qualquer problema ao paciente, são detectadas por um equipamento e processadas por um sistema, que fornece imagens do órgão que concentrou aquela substância radioativa. 

    É um médico nuclear que analisa essas imagens e faz um relatório para o especialista que a solicitou.

    A medicina nuclear, embora menos conhecida do que várias outras especialidades, é apontada por especialistas como uma das mais promissoras.

    E esta é apenas uma de suas aplicações. Além de empregados em diagnósticos, os materiais radioativos – seguros, praticamente indolores e não-invasivos – têm também finalidade terapêutica. 

    “Quando a gente fala de usar um material radioativo para diagnóstico, estamos nos referindo a uma quantidade tão pequena de radiação que ela é incapaz de gerar um efeito biológico”, explica George Coura, atual presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN).

    George descobriu, na medicina nuclear, uma maneira de mudar a vida de milhares de pessoas – caminho que atrai cada vez mais pesquisadores, analistas e clínicos.

    Nesta conversa com Future Health, o médico fala mais sobre este campo revolucionário, as principais descobertas e os futuros caminhos. 

    Não é todo dia que encontramos um médico especialista em medicina nuclear. Como você optou por este universo?
    Iniciei minha trajetória em 1998, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Cursei os seis anos da faculdade de medicina e, em 2003, completei minha graduação. À época, tinha dúvidas sobre qual área da medicina seguir. 

    Essa decisão demorou um ano – e, nessa época, comecei a estudar física, também na USP. 

    Eu já tinha um pouco de interesse nas áreas ligadas à radiação, tanto em possibilidades terapêuticas quanto em relação a diagnósticos por imagem. No ano de 2004, consolidei essa vontade de ingressar na medicina nuclear – e, oficialmente em 2005, iniciei uma residência na área, que se estendeu até 2008, quando me tornei especialista pela Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear.   

    Qual foi o seu primeiro trabalho oficialmente na área? Como sua carreira se desenvolveu?
    Comecei trabalhando como médico preceptor no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Depois de dois anos, fui contratado pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo como assistente, e ao mesmo tempo iniciei algumas empresas ligadas à medicina nuclear. 

    Fiz meu doutorado pelo programa de radiologia da USP, focado em câncer de tireoide, de 2012 a 2016. 

    Hoje trabalho meio período como médico assistente do Instituto do Câncer (SP), sou coordenador médico de uma unidade da Dimen Medicina Nuclear, da qual também sou sócio. E são quase 10 anos fazendo parte da diretoria eleita da Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear, tendo passado por dois mandatos como primeiro secretário e dois mandatos como vice-presidente. 

    Hora de falarmos de medicina nuclear. Me explica sobre a especialidade – e, mais do que isso, como é o dia a dia de um médico especialista nela? 
    A medicina nuclear é a área médica que administra pequenas quantidades de material radioativo para o paciente, por diversas vias, oral, subcutânea ou venosa, para uma distribuição biológica de interesse da propriedade física da radiação, permitindo captar uma imagem ou um tratamento por indução de morte celular, por exemplo. O médico nuclear é aquele que administra esse material radioativo para o paciente e, a partir disso, realiza diagnósticos e tratamentos para doenças. 

    Uma pergunta que você já deve ter ouvido de uma imensidão de pessoas: médicos nucleares precisam se preocupar com a exposição à radiação?
    Isso é bastante curioso. Quando a gente fala de usar um material radioativo para diagnóstico, estamos nos referindo a uma quantidade tão pequena de radiação que ela é incapaz de gerar um efeito biológico. 

    São quantidades ínfimas – suficientes apenas para um equipamento conseguir fazer uma imagem. 

    O paciente também não sofre um tempo deletério, por causa da pequena quantidade. Quando temos a necessidade de usar uma quantidade maior para o tratamento de uma doença, existe um planejamento que mede todo o risco e benefício para o paciente. As doses são administradas de acordo com a doença do paciente, o local do corpo e as características individuais de cada pessoa. 

    Por que a medicina nuclear é apontada como um dos principais ramos do futuro da medicina?
    Uma coisa que a medicina nuclear tem é uma liberdade muito grande de, conforme você descobre um processo biológico ou esclarece algo que antes não era entendido, ser possível criar uma molécula que tenha, como alvo, esse processo biológico – e colocar um material radioativo para fazer diagnóstico ou terapia. 

    Por exemplo: recentemente se descobriu uma proteína de membrana presente no câncer de próstata (o PSMA).

    Passamos então a utilizar um processo que permite a ligação nessa membrana para a detecção do câncer. Toda vez que surge o conhecimento novo de um processo biológico do ser humano, a medicina nuclear pode entrar com a invenção de um novo radiofármaco. 

    E quais foram os maiores avanços da medicina nuclear nas últimas duas décadas?
    Gosto de destacar, primeiro, o desenvolvimento das aquisições tridimensionais: em vez de utilizarmos imagens planas, como em um raio X, passamos a ter imagens em 3D de tomografias – aumentando a precisão das estruturas afetadas pela doença do paciente. 

    Em segundo lugar, o desenvolvimento das moléculas radiomarcadas como emissores pósitron – que permitem a médicos nucleares utilizarem menos radiação para detectar lesões com maior resolução espacial – o PET-CT. 

    Como molécula mais corriqueira, utilizamos um análogo da glicose: uma espécie de açúcar marcado com um emissor radioativo que nos permite enxergar como as células estão fazendo uso da glicose. Por fim, o que vejo como o maior avanço dos últimos cinco anos é o desenvolvimento de um conceito que chamamos de teranóstico: sempre buscar usar a mesma molécula para diagnóstico e terapia. 

    Essas evoluções e conquistas já alcançam o paciente brasileiro, especialmente no que diz respeito à saúde pública? 
    A medicina nuclear está presente, sim, e boa parte das tecnologias já está disponível para pacientes. A questão do acesso, porém, ainda é assimétrica. Temos diversos procedimentos de cobertura obrigatória na saúde suplementar, através da ANS, e que não são de cobertura obrigatória no SUS. 

    O paciente com um plano de saúde ou que faz o uso particular consegue, sim, acesso a tecnologias mais novas de forma muito mais rápida do que um paciente do SUS. 

    Outra coisa que também temos é que boa parte dos procedimentos de medicina nuclear ainda são realizados no sistema suplementar de saúde. Ampliar o acesso da medicina nuclear ainda é algo extremamente necessário para que tenhamos um bom patamar de saúde para pacientes do sistema público. 

    A medicina nuclear se encontra, em algum momento, com terapia gênica? 
    Hoje é possível saber, por exemplo, ao olhar um tipo de câncer, quais tipos de mutação genética ocorreram para que o tumor se desenvolvesse. Isso não acontece em todos tumores e mutações, mas isso já é possível. 

    Em certos casos, essas mutações têm implicações biológicas – como expressão de receptores de membranas em alguns tipos de tumores, que passam a ser alvos de tratamentos como quimioterápicos, terapias alvo e outras. 

    No caso do câncer de pulmão, por exemplo, podem existir mutações que levam à expressão de uma proteína específica de membrana, e outros que não têm. Como identificamos isso? Através do tipo de mutação pesquisada. 

    Existe algum tipo de gap hoje, na medicina nuclear, em oferta e demanda? Precisamos de mais médicos nesse campo atualmente?
    A entrada de profissionais na medicina nuclear é muito cíclica. Existem momentos em que há uma expansão do número de equipamentos e clínicas, gerando a necessidade de maior formação de profissionais, e isso leva um pequeno tempo para acontecer. 

    Depois, passamos por uma fase de grande formação de profissionais, mas acaba crescendo menos em número de clínicas. 

    Isso resulta em um excesso de formação que acaba desaguando (e sendo corrigido) pela falta de oportunidades. Nos últimos anos, viemos de um ciclo ruim de crescimento. Dois fatores pesaram: a economia estagnada e a pandemia. Hoje estamos iniciando o ciclo de retomada, diferentemente de 2020 e 2021. 

    Você sente que a medicina nuclear deu alguns passos para trás, em termos de financiamento de pesquisa e outros esforços, por causa da Covid-19?
    Impactou, com certeza, mas o interessante da medicina nuclear é que ela pode ser aplicada a vários mundos. 

    Durante essa época da Covid, estudamos muito a cintilografia de perfusão pulmonar.

    Justamente porque ela consegue mostrar pequenas tromboses, que impactarão o paciente mesmo depois do final do processo inflamatório da Covid. Conforme mudam as doenças dos holofotes, a medicina nuclear se adapta. Falo bastante de câncer pois é uma área que tenho bastante interesse, mas a medicina nuclear se adequa à cardiologia, neurologia e outros campos.

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