O neurocirurgião Marcelo Magaldi não é exatamente mineiro. Nasceu em São Paulo, mudou-se ainda bebê para o Rio de Janeiro e só com 8 anos foi morar em Minas Gerais. Dito isso, tudo nele lembra aquele jeitim associado à mineirice: do sotaque cantado à discrição.
Marcelo não gosta de chamar a atenção para si. Isso não quer dizer, porém, que ele não queira que sua linha de pesquisa ganhe os holofotes.
O neuromicrocirurgião, que se formou em medicina (ou que “formou em medicina, como preferem os mineiros) na Universidade Federal de Minas Gerais, descobriu, ao lado de alguns de seus alunos, que a placenta é uma ótima ferramenta para treinamento de alunos de medicina, médicos formados e agentes de saúde de forma geral.
Tudo começou com uma placenta encontrada no lixo da UFMG, encontrada por um aluno. Marcelo percebeu que o material, que havia sido tratado com um ácido, era muito vascularizado e que poderia servir para alguma coisa.
Mergulhou nos estudos e achou quase nenhuma publicação sobre o tema. E resolveu então debruçar-se nele. E, anos depois, ele e sua turma de alunos pesquisadores publicaram diversos artigos com suas descobertas sobre a placenta, tanto humana quanto bovina.
O material é excelente para treinar não só procedimentos médicos – a exemplo microcirurgias (aquelas tão delicadas que são feitas com auxílio de um instrumento de ampliação) e extração de tumores – como também de saúde, como punções.
É uma baita conquista para a ciência brasileira. Mas muito pouco divulgada – e, pior, ainda com pouco reconhecimento.
O Hospital Felício Rocho, de Belo Horizonte, é uma das instituições que passaram a apoiar o neurocirurgião. E inaugurou, em outubro do ano passado, o Centro de Treinamento em Microcirurgia, que vai ser coordenado pelo neuromicrocirurgião Marcelo Magaldi. Lá, ele pretende dar treinamentos usando seu material preferido.
Marcelo conta nesta entrevista como conduziu suas pesquisas, que já sofreram muita gozação até por parte de colegas, e revela que é mais reconhecido no exterior do que no país. Mas diz que continua na batalha para que a placenta ajude cada vez mais a saúde brasileira.
Como você se interessou em usar placenta em treinamentos?
O professor Sebastião Gusmão, que já é aposentado, tinha montado um laboratório tipo de garagem, mesmo, sem nenhum recurso, com investimento dele só, no subsolo da faculdade, que era uma área abandonada. Eu nem frequentava o laboratório, não sei bem por quê.
Certo dia, um aluno achou no lixo da faculdade – no lixo mesmo – uma placenta humana embalsamada numa caixa de vidro e levou para o laboratório.
Eu vi e pensei: “Uai, isso aqui é muito legal”. Isso foi em 2009. O meu aluno, o Arthur Nicolato, que hoje é neurocirurgião aqui em Belo Horizonte, que me mostrou aquela caixa com placenta formolizada. E um professor tinha jogado nela um ácido que destruiu toda sua carne, leigamente falando, e ficaram só as veias, os vasos da placenta.
Olhar para aquilo é como se você estivesse olhando para uma árvore muito bonita, muito grande, mas sem folha nenhuma, apenas com os galhos, todos exuberantes.
E eu nunca tinha visto uma placenta daquela maneira, com aquela quantidade de vasos, veias, artérias. E pensei que devia ser interessante fazer algo. Corri na internet pesquisar e vi que um cirurgião plástico inglês, em 1979, já tinha escrito um breve artigo falando que a placenta humana serviria para tratamento cirúrgico. Esse artigo era quase uma nota, tinha poucas linhas. Vasculhei então a literatura, vasculhei, vasculhei e não achei mais nada depois disso. Só encontrei, em 1992, um outro artigo de um autor europeu, muito breve, comparando os vasos da placenta humana com diâmetros semelhantes aos vasos do cérebro. E era só isso. E então nós começamos a estudar e a namorar essas placentas. E assim começou minha linha de pesquisa de treinamento de saúde em placenta.
Como isso foi recebido no meio acadêmico?
Sempre fui zombado e criticado ao escolher minha linha de pesquisa por praticamente 100% das pessoas no início. Ouvia coisas como: “Ah, você vai mexer com isso?”, “Isso aí nunca vai dar em nada”.
As pessoas viravam as costas para mim. Gente que, depois, passou a se vangloriar do resultado.
Não sei se você já teve a oportunidade de ver uma placenta ou um parto. Aquilo, de fato, é um negócio gosmento, um tanto repugnante. O destino dela é o lixo. Primeiro guarda-se por um tempo, para ver se o bebê não vai ter alguma condição para a qual ela seja necessária, vai para o departamento de patologia e depois de uma semana eles incineram aquilo e vai para o lixo mesmo. É lixo biológico. Vou falar publicamente algo que é verdade: você nunca consegue começar uma coisa totalmente nova de uma maneira exatamente legal. Então nós íamos no hospital, à noite, e pedíamos para a enfermeira: “Posso pegar uma placenta? Vai jogar no lixo. Você me doa ela?” E assim conseguimos. Depois que começamos a publicar os artigos é que a coisa foi ativamente e legalmente formalizada.
Como tudo na vida, a gente só vê valor de algo dentro de casa quando alguém de fora valoriza.
Quando meu primeiro artigo foi aceito na mais famosa revista norte-americana, a “Neurosurgery”, aí o pessoal cresceu o olho.
Quais são as vantagens que você vê em treinar a microcirurgia com placenta humana?
Se você me permite, vou só fazer uma pequena correção na pergunta. Porque a microcirurgia foi só a ponta do iceberg. Hoje, com o material, a gente consegue treinar desde uma punção venosa no braço, para quando você vai tirar sangue no laboratório, e pontos na pele, para quando você tem um acidente, até uma cirurgia na barriga, no coração, no cérebro, a extração de um tumor. Serve para absolutamente tudo.
Mas o X médico da questão é que esse treinamento não é um ensino de anatomia. É um treinamento técnico.
Transformando para sua profissão, vamos dizer que, para você escrever um texto bom para as pessoas lerem, você tivesse que ter uma letra bonita. O que eu faço com a placenta é permitir que as pessoas tenham a letra muito bonita.
O treinamento serve então para todas as áreas da medicina?
Para todas as áreas da medicina e da enfermagem. Quando a pessoa me fala: “Mas que legal essa pesquisa sobre microcirurgia…”, eu falo: “Realmente é muito legal, mas microcirurgia foi lá atrás, agora já é uma pesquisa muito, muito ampla”. Ele pode também ser usado para treinamento de policiais, de militares, de primeiros socorros, de atendimento básico. E isso abre um tanto de possibilidade. O mais interessante de tudo é que eu acho que, sem querer tomar partido político nenhum, é um projeto muito verde, porque você pega uma coisa que tinha no lixo e transforma numa coisa muito útil sem agredir a nada.
Quer entender mais sobre a técnica? Assista a este vídeo do neurocirurgião em prática |
E o que essa técnica substitui? Qual é a alternativa a ela?
O treinamento em saúde – e pode ser medicina, enfermagem – é feito basicamente com cadáver, animal vivo, animal morto e recentemente em materiais sintéticos e realidade virtual. Cadáver é o nosso corpo humano, é fundamental para estudar anatomia.
Algumas técnicas de procedimentos invasivos, no entanto, não são possíveis de serem reproduzidas no cadáver.
Primeiro porque você mexe e o danifica, e não dá para armazenar muitos cadáveres em faculdades, escolas, hospitais e instituições de ensino para dar cursos. Além disso, custa caro e tem o problema ético. O animal vivo, não precisa nem falar. O animal morto tem as mesmas restrições do cadáver. E você pode até ir ao supermercado e comprar, mas ele vem congelado, duro, não tem sangramento. E o sangramento é uma coisa importante, porque os tecidos são vivos. O sintético é sintético: muito bonito de se ver, mas é borracha, não oferece a textura igual, não tem separação de tecidos, não tem o próprio tecido, sangramento, nada disso. E o treinamento virtual é muito moderno, muito sedutor, mas também falta o toque.
E a placenta, o nosso simulador, é muito fácil de obter hoje em dia. É totalmente legal, já está tudo reconhecido, é biologicamente fresca, tem sangramento.
Você compra um modelo e consegue reproduzir “n” exercícios ali. Então é uma saída muito prática, viável, com alta fidelidade, eticamente correta para o problema de treinamento mesmo.
Quais as diferenças da placenta bovina para a humana?
A placenta bovina é muito maior e tem uma estrutura diferente. Tem melhor ou pior? Não, as duas são boas para determinadas coisas. Para neurocirurgia, por exemplo, a humana é sensacional. Para outras cirurgias e outras intervenções, laparoscopia, robótica etc, a bovina é sensacional. Trabalhei dando cursos nos Estados Unidos durante vários anos, e em estados como Nova York, Flórida, Texas, Califórnia e vários outros, já há leis estaduais que estabelecem que a placenta é da mãe, que decide o que vai fazer com ela. Se quiser comer, vender, levar para casa, é ela que vai resolver isso.
O que eu acho um pouco de sacanagem, para falar a verdade, é que várias empresas americanas compram a placenta da mãe, incineram, colocam dentro de uma cápsula e vendem mais caro para a mãe tomar.
Arrumaram um jeito de ganhar dinheiro em cima dessa placenta. No resto do mundo, incluindo aí Europa e Brasil, é difícil vencer a burocracia. A placenta humana não é comercializável fora dos Estados Unidos. Então muita gente adora minha pesquisa, mas não sabe como conseguir uma placenta humana, como prepará-la.
Aí pensei: por que a gente não monta uma industriazinha de placenta? E, já que não podemos pegar placenta humana, pegamos a bovina em lugares registrados pelo Ministério da Agricultura.
Limpamos a placenta, lavamos, esterilizamos e guardamos no congelador, como o frango no supermercado. Quando você quiser usar, descongela e ela vai ficar viva de novo. Agora estamos conseguindo chegar a um preço bem acessível e oferecer uma placenta totalmente estéril, lavada, sem risco nenhum, para treinar. Esse é o propósito agora.
Por que a técnica não está amplamente divulgada e não está todo mundo fazendo isso em tudo quanto é faculdade e hospital?
Excelente pergunta. Se você descobrir, me fala. Porque eu já rodei, já falei, já expliquei. Acho que, como tudo o que é novo, tem resistência. Por incrível que pareça, o reconhecimento da pesquisa é infinitamente maior internacionalmente do que aqui no país.
O Hospital Felício Rocho criou um Centro de Treinamento em Microcirurgia no ano passado. Como ele é?
Exatamente. O Felício Rocho é um hospital muito tradicional em Belo Horizonte, muito de vanguarda. Muita coisa inovadora surgiu lá, ele é bem equipado e bastante bem conceituado. E o fato de o hospital ter destinado um espaço para a realização de cursos de técnica em saúde é um grande avanço. Claro que, com a pandemia, o negócio não está ainda com força total. Mas daqui a alguns meses é que realmente a coisa vai acontecer e as pessoas vão enxergar de verdade.
Lá no Felício Rocho já existia uma vontade dos neurocirurgiões de ter o treinamento de microcirurgia.
E, com os meus artigos saindo, encontrei com um colega meu que é neurocirurgião lá há muitos anos que falou de um espaço que havia lá e perguntou se a gente conseguiria fazer nada. Me ofereci para dar uma palestra para a diretoria. E rapidamente eles pegaram a ideia e estão apoiando pra valer. Mas realmente fiquei surpreso e grato por ter sido reconhecido com esse acolhimento por um hospital privado, que é filantrópico, e com a possibilidade de desenvolver vários trabalhos lá dentro e também prestar serviço para a faculdade de medicina.
Neste momento, algum aluno conduz pesquisa nessa linha?
No momento eu tenho até alunos demais. São nove, entre mestrandos e doutorandos, fazendo trabalho. Acabamos de publicar um artigo sobre o uso da placenta humana simulando um derrame cerebral. Outro aluno defende o mestrado sobre o uso da placenta humana e bovina. Nós também migramos para a placenta bovina para treinar ponte de safena. Tem ainda trabalho sobre o treinamento de punção venosa. Outra aluna, que vai defender doutorado, trata sobre o treinamento em punções guiadas com ultrassom. Agora, os próximos vão ser para cirurgia robótica, o pessoal já está doido para isso, e para cirurgia laparoscópica.
Agora você se sente valorizado na sua área?
Me sinto valorizado cientificamente pelo que trilhei, com a ajuda dos alunos, que me auxiliam muito, dentro da minha linha de pesquisa. Em termos de valorização da universidade, em termos de valorização de outros profissionais, do mercado e até de colegas, nem um pouco.
O mais triste é você desenvolver uma coisa em uma instituição acadêmica, para o propósito de pesquisa, e sentir que não reconhecem seu trabalho.
Lá fora eu sou tratado de forma muito diferente. Logo antes da pandemia, teve um congresso em Zurique, na Suíça, e eu fui convidado para dar uma palestra para um pessoal de microcirurgia vascular cerebral. Tinha 150 participantes, que para um congresso desse porte é muita gente, de todos os continentes. E depois me convidaram para dar um curso na placenta. Logo depois do curso, recebi uma visita de um neurocirurgião que pratica na Finlândia. Ele quis vir aqui conhecer nosso laboratório, nossa pesquisa. E adorou, fez vários vídeos. Já dei cursos em Jacksonville, na Flórida, sobre placenta. Mas aqui ainda meu estudo não tem esse status.
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