• “Termos como IA e big data são parte da pauta de nossas discussões estratégicas”, diz o cirurgião torácico Fabio Jatene

    O cirurgião torácico Fabio Jatene
    Jose Renato Junior | 4 ago 2021

    Desde criança, Fabio e seus três irmãos assistiam, cheios de admiração, ao pai falar com paixão sobre seu trabalho. As conversas em casa, a dedicação à profissão e o prazer em cuidar das pessoas do cardiologista Adib Jatene, um dos pioneiros da cirurgia do coração no país e ex-ministro da Saúde, tiveram, sem que qualquer pressão fosse exercida, consequências no destino daquela família.

    Três dos quatro irmãos seguiram não apenas a carreira médica, mas também especializaram-se em cirurgia cardíaca. Fabio Biscegli Jatene, o primogênito, puxou a fila – atrás dele vieram Ieda e Marcelo, ambos cirurgiões cardíacos pediátricos (a caçula Iara é arquiteta). 

    “Nós em casa vivíamos um clima muito forte do exercício da medicina”, conta ele.

    “Meu pai ficava totalmente envolvido com isso, falava sobre isso ao telefone, e entendíamos que essa era uma profissão importante, que ele cuidava de pessoas, melhorava a saúde delas.”

    Fabio aprendeu com os melhores. Já na faculdade, depois das aulas, encontrava um grupo de amigos do pai para auxiliar em cirurgias no hospital Beneficência Portuguesa – onde, em 1968, Adib Jatene realizou a primeira cirurgia de ponte de safena do país. 

    Frequentador de listas dos melhores médicos do país, Fabio, aos 66 anos, coleciona títulos e cargos. É professor titular de cirurgia torácica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, líder médico da Cardiologia do Hospital do Coração (HCor), vice-presidente do Conselho Diretor do Instituto do Coração (InCor), coordenador do InovaInCor e vice-presidente do Conselho de Inovação do Hospital das Clínicas (HC). 

    Publicou mais de 200 artigos em revistas científicas nacionais e internacionais e recebeu diversos prêmios – o mais recente deles, em julho, foi os “100 Mais Influentes da Saúde da Década”, realizado pelo Grupo Mídia.

    Nesta entrevista, entre outras coisas, ele relembra a convivência com Adib, conta como foi seu início de carreira e discorre sobre seu envolvimento com a inovação e a tecnologia.

    Seu pai foi um grande médico – e você e três irmãos seguiram a carreira. Qual o peso disso para você optar pela medicina? Ou: tinha como ser diferente?
    Somos em quatro irmãos em casa, e três seguiram a carreira médica. Sem dúvida, isso foi devido a uma forte influência paterna. Entretanto, essa influência nunca foi feita ou exercida pelo meu pai no sentido de sugerir ou de propor que fizéssemos isso. Nunca. Ela mais foi por atos, por mensagens do seu desempenho, do seu trabalho – e através de exemplos. Nós em casa vivíamos um clima muito forte do exercício da medicina. Meu pai ficava totalmente envolvido com isso, falava sobre isso ao telefone, e entendíamos que essa era uma profissão importante, que ele cuidava de pessoas, melhorava a saúde delas. 

    Muitas vezes estávamos fazendo refeições em família, meu pai recebia uma ligação e saía para atender o paciente. 

    Mais importante que tudo foi o bom exemplo. Em nenhum momento, não me lembro, na vida inteira, em décadas, de ver meu pai ter reclamado de ter que ir atender alguém. Nunca, nunca. Ele exercia a medicina de uma forma muito dedicada e muito prazerosa. Então para nós ficou o exemplo de alguém dedicado, que fazia aquilo com muito gosto, que tinha satisfação em cuidar das pessoas, em atender e tentar reestabelecer a saúde delas. Acho que essa foi a grande influência que nós sentimos e que tivemos em casa. 

    Como era conviver com um inovador com uma mente tão brilhante como a do professor Adib Jatene?
    Tive a felicidade de poder conviver muito com o professor Adib. Nós éramos muito próximos durante a infância, adolescência, durante a formação profissional e também durante a minha atividade profissional, tanto em família como profissionalmente. E ele gostava muito de conversar, de expor as suas ideias, a forma como ele entendia as questões, os problemas. Isso foi me marcando muito durante a vida toda. Algo muito interessante era a forma com que ele conseguia analisar os problemas e encontrar soluções. A maioria das pessoas – e isso é uma interpretação que tenho do seu comportamento e da sua mente – vê um problema, analisa e tenta achar uma solução que costuma ser a convencional. Ele analisava e entendia da solução convencional, mas ele sempre buscava ou sempre tinha outra opção diferente daquilo. 

    Meu pai enxergava o problema de uma forma que a maioria de nós não conseguia e rapidamente tinha uma solução inovadora. Ele perguntava: e se for feito de outra maneira? 

    E, com isso, o tempo todo ele abria novos caminhos e novas opções. Na cirurgia, por exemplo, ele introduziu várias técnicas inovadoras. Algumas são técnicas cirúrgicas que são usadas no mundo inteiro e levam o nome dele: Operação de Jatene. Não era forçado, ele não ficava o tempo todo falando: tenho que achar uma outra solução. Não, era natural. Acho que essa é a minha definição para a mente do professor Adib: ter uma capacidade intelectual de buscar sempre uma forma diferente de agir. E com isso ele não se tornava um indivíduo chato ou supérfluo. Sua cabeça tinha uma forma muito peculiar de agir, isso é extraordinário. Não me lembro de ter visto em nenhuma outra pessoa essa característica. 

    O que mais o atraiu em relação à cardiologia? 
    Na verdade, exerço uma área cirúrgica ligada à cardiologia, a cirurgia cardiovascular, e também exerço a cirurgia torácica. Essa decisão eu tomei mais ou menos no final da faculdade, perto do quinto ano. Procurei ter paciência ao optar pela especialidade que eu exerceria porque entendi que era uma decisão que influenciaria minha vida toda. Então, durante a faculdade, me dediquei às várias áreas de uma forma semelhante. Preciso confessar que a área cirúrgica sempre me atraiu mais que as outras. Achava que a possibilidade de resolver o problema dele de forma cirúrgica era magnífico. 

    Desde meu quarto ano, no fim do expediente, o grupo do meu pai, que era muito ativo, operava até tarde da noite, todos os dias. E sempre que eu podia, passava no hospital [Beneficência Portuguesa] e ficava pronto para ajudar no que precisasse.

    Às vezes ajudava instrumentando uma operação, às vezes ajudava alguém a fazer o fechamento do tórax. Tentava sempre participar de uma forma muito modesta, inicial, mas procurava estar à disposição para o que fosse. E aquilo foi criando um vínculo muito forte. A especialidade de cirurgia cardiovascular estava em grande ebulição, assim como a torácica. Elas incorporavam novas técnicas e tecnologias, em relação a diagnóstico e tratamento, e aquilo foi muito marcante pra mim. Então acho que teve esses elementos de simpatia e atração pela área cirúrgica; o fato de eu poder conviver mais com as áreas cardiovascular e torácica, e o grande desenvolvimento que essas especialidades estavam tendo. 

    E hoje, quais são as maiores tendências e as inovações em relação às cirurgias torácica e cardiovascular? 
    Essas duas especialidades sempre tiveram muito apoio da tecnologia, seja para o diagnóstico ou para realizar as operações. O emprego de robôs e de dispositivos como corações artificiais, por exemplo, tornam cada vez mais as operações mais eficientes, mais seguras e com menor agressão ao paciente, com cortes menores e com o tempo de recuperação pós-operatório bem mais rápido. Esta deverá ser uma tendência dos próximos anos. Creio também que a incorporação de outras tecnologias, como tratamentos e terapias por cateter que podem ser empregados de maneira associada a cirurgias, os chamados procedimentos híbridos, deverão melhorar ainda mais esse cenário. 

    De tal sorte que a tendência, na minha opinião, é a continuidade da incorporação tecnológica, tornando operações mais seguras e mais eficientes.

    Um problema disso tudo é que essa incorporação tecnológica muitas vezes tem custo alto, e esse é um dos desafios que nós temos que enfrentar: tentar trazer a tecnologia para uma maior parcela da população. Felizmente, à medida que esses avanços tecnológicos vão sendo cada vez mais empregados, existe uma tendência de que o custo desses equipamentos e dispositivos vá se tornando melhor. E isso é fundamental. 

    Quais são, para o senhor, os principais benefícios que a transformação digital está trazendo – e pode trazer ainda mais – para a saúde? 
    Eu poderia ficar discorrendo por horas sobre os benefícios da transformação digital para a saúde. Mas, talvez, o grande ganho tenha sido a necessidade de revermos nossas práticas, enraizadas nas instituições, sairmos da nossa zona de conforto e olharmos para outros segmentos de mercado que já estavam adiantados no processo da transformação digital, como o setor financeiro e de varejo. 

    Investir em transformação digital tornou-se uma obrigação, uma questão de sobrevivência para qualquer instituição, para manter-se competitiva no mercado por meio do ganho de eficiência, gestão de custos com a otimização de seus processos e aperfeiçoamento da qualidade dos serviços ofertados ao paciente, entre outros benefícios. 

    Termos como inteligência artificial, big data, wearables, internet das coisas, business intelligence fazem parte agora da pauta de discussões estratégicas nas instituições de saúde. A transformação digital vai muito além da incorporação tecnológica, está mais relacionada à mudança da forma como enxergamos os processos de saúde, ou seja, a mudança de mindset. Os pacientes são os principais ganhadores desse processo, pois a transformação os coloca no centro da jornada – e não mais a doença, o que significa uma grande mudança de paradigma.  

    Seu colega Giovanni Cerri, diretor do InovaHC, nos contou que 30% dos alunos dele querem empreender. O senhor vê algo parecido entre os seus alunos? Como é a relação deles com a inovação e o empreendedorismo?
    Venho me dedicando ao ensino da medicina nos últimos 35 anos. Nesse período, já presenciei algumas transições de foco, como a busca por especialidades que oferecessem melhor qualidade de vida e estabilidade financeira mais rápida. A criação de ligas acadêmicas e procura por disciplinas optativas, buscando maior participação em projetos de pesquisa, demonstram um anseio do aluno de se aproximar da prática, já que sua formação completa demora, em alguns casos, cerca de 10 anos. Mais recentemente, eles têm demonstrado interesse em abrir startups, trabalhar em grandes companhias de tecnologia e empreender na área da saúde. 

    Acredito que haja um certo modismo, principalmente pelo apelo tecnológico, que seduz essa geração. 

    Entretanto, muitos realmente têm o DNA da inovação, se destacando pela inquietação e vontade de mudar. Buscando auxiliar esses jovens, há dois anos, criei, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a disciplina optativa de Inovação & Empreendedorismo em Saúde. Já recebi vários alunos que revelam que têm um ideal por trás, de buscar soluções que, aliadas à realização pessoal e profissional, façam a diferença na vida do paciente.

    E a sua relação com esse ecossistema de inovação, como é? O que o senhor tem visto de mais bacana?
    Há alguns anos, tive a oportunidade de conhecer dois grandes ecossistemas de inovação, um deles em Israel e o MaRS, no Canadá. Desde então, tinha o desejo de colaborar para a criação de um modelo semelhante no Brasil. Em 2015, propus a criação do núcleo de inovação no Instituto do Coração – o InovaInCor, que foi uma das iniciativas precursoras do movimento de inovação no complexo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). 

    Atualmente, atuo como coordenador do InovaInCor e vice-presidente do Conselho de Inovação do HCFMUSP.

    Como afirmei anteriormente, umas das coisas que mais me animam é esse processo de mudança do mindset nos diversos atores da cadeia da saúde. Profissionais médicos, multiprofissionais, gestores, estudantes, empreendedores, todos buscando um propósito comum, que é a saúde de excelência, acessível e sustentável. Vejo no horizonte um cenário que vai além do desenvolvimento de novas tecnologias, com a criação de empregos e prosperidade econômica, mas, sobretudo, que melhore a qualidade de vida das pessoas.

    Qual foi o impacto que a Covid-19 teve em relação aos pacientes não-portadores e como isso afetou o HCor?
    Após o início da pandemia, muitos pacientes passaram a procurar clínicas e centros diagnósticos e hospitais para fazer diagnóstico de Covid e tratar das suas complicações. Por outro lado, nesse mesmo período, que mais ou menos correspondeu ao segundo trimestre de 2020, muitos pacientes que apresentavam outras doenças passaram a evitar os hospitais, imaginando que, se fossem a eles e a centros diagnósticos, poderiam contrair Covid. Dentre as causas mais importantes de mortalidade no nosso meio estão as doenças cardiovasculares e as doenças neoplásicas. A maior parte dos pacientes tratados no HCor estão lá por causa de doenças cardiovasculares. 

    O que se observou é que, em relação ao HCor, os pacientes portadores de doenças cardiovasculares começaram a evitar o hospital – e, dessa maneira, de forma natural a doença passou a se agravar. 

    Vários pacientes passaram a ter piora das suas condições clínicas e um índice maior de morbimortalidade. À medida que os hospitais e os centros diagnósticos passaram a compreender melhor a Covid e enfrentar melhor o problema, houve uma separação dentro do próprio hospital de pacientes portadores e não-portadores dela. Isso passou a ser realizado e empregado através de protocolos e guias de conduta e foi muito eficiente. Aquele grande temor que havia no início da pandemia, de que se pudesse haver a contaminação intra-hospitalar, reduziu muitíssimo. Isso, a partir do terceiro e quarto trimestres de 2020, aconteceu no HCOR e permitiu que os pacientes voltassem a se tratar. 

    A melhor compreensão da doença e a melhor elaboração de protocolos e de tratamento e diagnóstico intra-hospitalar foram muito importantes para fazer com que esses pacientes voltassem ao hospital.

    Isso se mantém de uma forma eficiente até hoje, e agora com a vacinação esse número de contaminações, que já era muito baixo, uma vez que os fluxos de pacientes foram separados, reduziu ainda mais. Hoje, os hospitais voltaram a ter sua capacidade quase plena de ocupação, porque muitos pacientes que atrasaram seus tratamentos agora estão buscando-os. Mas eu reforço que esse convívio dentro do hospital está muito bem cuidado. As contaminações intra-hospitalares hoje praticamente não estão ocorrendo.

    O que viver uma pandemia como esta representou para um médico tão experiente como você? 
    A pandemia foi a pior experiência que tive na minha carreira profissional, e certamente de praticamente todos os médicos e profissionais de saúde que eu conheço. Por tudo o que ela representou: a enorme quantidade de pacientes doentes, a enorme quantidade de pacientes que morreram em decorrência da doença, a falta de conhecimento sobre a doença, a insegurança, a incerteza… Foram momentos terríveis para os profissionais de saúde. Felizmente no mundo todo a busca pelo entendimento, a busca por soluções para tentar superar a doença foram muito, muito rápidas e muito efetivas.

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