• “Tratar de endometriose é tratar da mulher e não do órgão”, diz o ginecologista Mauricio Abrão

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    Mauricio Abrão, ginecologista especializado em endometriose. (Foto: Divulgação)
    Jose Renato Junior | 6 jun 2022

    Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a endometriose afeta cerca de 10% da população feminina brasileira. Somente em 2019, 11.790 brasileiras precisaram de internação por causa da doença. Entre os sintomas, cólica menstrual intensa e dor na relação sexual são os principais. E a demora no diagnóstico é um empecilho para quem busca soluções.

    “Há um tecido que reveste a cavidade do útero chamado endométrio, que se renova todo mês porque fica se preparando para receber o embrião. Quando a mulher não tem uma gravidez, o endométrio se descama e é expulso do corpo naquele sangue da menstruação”, descreve Mauricio Abraão, coordenador da ginecologia da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo, professor associado do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e chefe do setor de Endometriose do Hospital das Clínicas da USP (HCFMUSP).

    “A endometriose, em linhas gerais, é quando esse tecido se implanta fora do útero, podendo ser nos ovários, na cavidade abdominal, e outras partes do corpo.”

    Confira a seguir a conversa com o especialista, que também é o primeiro presidente não-americano da AAGL, maior sociedade de cirurgia ginecológica do mundo. Ele fala sobre os principais avanços da área e a nova categorização da endometriose:

    FUTURE HEALTH: Como você decidiu se dedicar a uma área tão específica dentro da ginecologia, que é a endometriose? Que caminhos que o levaram?

    MAURICIO ABRÃO: Quando me formei, resolvi fazer ginecologia obstetrícia, que era uma especialidade que me permitia olhar a mulher como um todo. Eu também tinha a perspectiva de atuar como cirurgião, clínico, conhecer a endocrinologia e a oncologia ginecológica, tudo em uma só especialização.

    E nessa trajetória, no final da década de 1980, quando acabei a residência, me encaminhando para ser cirurgião, percebi uma avenida não trafegada, uma doença muito prevalente e que pouca gente conhecia. Então comecei a estudar, criei o setor de endometriose no Hospital das Clínicas da USP e começamos a estudar a fundo isso.

    FH: Quais foram os primeiros estudos?

    MA: Começamos a estudar como fazer o diagnóstico não-invasivo. Existia uma fila enorme de pacientes que precisavam da laparoscopia. Desenvolvemos uma forma de fazer diagnóstico por um marcador de sangue e nos anos 2000 começamos a utilizar o ultrassom com preparo intestinal, que acabou sendo alvo de várias publicações desde 2017.

    A partir delas, começamos a entender de uma forma mais detalhada como esse ultrassom podia trazer benefício para as mulheres e com protocolos específicos para endometriose.

    FH: Existe alguma causa específica para a endometriose?

    MA: Há várias causas que justificam a doença. Uma delas ocorre quando a menstruação é retrógrada, ou seja, em vez de fluir totalmente pelo canal vagina, segue pelas trompas e pode ir para a cavidade abdominal. E há também um fator imunológico envolvido. Então, o casamento desse refluxo menstrual com a baixa imunidade é o que culmina na doença. Se você cuidar da imunidade, seus riscos diminuem, mas não exclui a possibilidade.

    FH: Quais são os principais sintomas e o que de pior pode acontecer com a mulher com endometriose?

    MA: Os principais sintomas são o que chamamos de 6D: dor na menstruação, dor na relação sexual, dificuldade para engravidar, dor para evacuar na menstruação, dor para urinar na menstruação e dor entre as menstruações.

    Esses seis sintomas são super importantes quando se fala na doença e todos começam com D, daí o nome. O principal problema da endometriose a longo prazo é a dificuldade para engravidar. Mas há também o fato de que os sintomas podem ser incapacitantes, diminuindo a qualidade de vida da paciente.

    Por fim, o quadro pode envolver múltiplos órgãos, como intestino e bexiga, de formas variadas. Doenças de fundo imunológico, por exemplo, podem ter associação com a endometriose, como a Doença de Crohn.

    Além disso, 30% das mulheres que têm endometriose apresentam alguma disfunção tireoidiana, e estudos agora já apontam até a relação com doenças reumatológicas, como lúpus, ou de pele, como a psoríase. Como ela tem fundo imunológico, pode coexistir com outras doenças.

    FH: O que mudou com a nova classificação da doença, tanto no conceito quanto na prática clínica?

    MA: Nos últimos anos, desenvolvemos uma classificação que vai direto ao ponto, descrevendo a doença de acordo com o os locais que ela pode comprometer e dividindo-a em 4 estágios.

    A partir dessa classificacão, desenvolvemos um aplicativo, chamado endometriosis classification AAGL. Ele indica onde está a doença, qual sua classificação e em breve será capaz até de ler o ultrassom. 

    Isso fez uma grande diferença para quem tem a doença porque possibilita um planejamento mais adequado e assertivo para o tratamento.

    FH: Qual é o perfil das pacientes com endometriose – se é que há algum?

    MA: Mulheres que têm menos filhos ou que demoram para engravidar e até que apresentam um nível de estresse mais elevado – o que altera a imunidade e favorece a doença. Há estudos na área de psicologia atrelados à ginecologia que sugerem características da personalidade das pacientes como detalhistas, exigentes e competentes, mas também muito ansiosas.

    FH: Qual é o tratamento mais indicado atualmente? 

    MA: Se a doença é avançada, o tratamento cirúrgico é uma necessidade. O top de linha hoje são cirurgias avançadas para retirar os focos da doença de uma forma minimamente invasiva, e hoje os grandes hospitais, como a própria BP, tem capacitação para isso. 

    Também há algumas novidades no tratamento clínico voltadas para medicações que ajudam no controle da dor. 

    Não menstruar também faz parte de uma das modalidades do tratamento, mas não funciona para todas as mulheres, já que várias pacientes querem engravidar. 

    FH: Quais são os principais equívocos em relação à endometriose – tanto por parte dos médicos como por parte das crenças populares?

    MA: Uma das crenças populares mais clássicas é a de que cólica menstrual passa depois de casar. 

    Hoje, sabemos que 40 a 50% das adolescentes com cólicas incapacitantes podem ter endometriose. 

    Outros fatores importantes, que dificultam o tratamento, é a mulher que demora para procurar o médico e o médico que demora para pensar na doença mesmo vendo a paciente com dor na menstruação ou que demora para pedir o ultrassom certo. 

    Outro erro comum é a mulher ser tratada por um médico que não é especialista, que infelizmente vai acabar tratando só a ponta do iceberg. São sequências de equívocos que podem aparecer e que são negativos para o futuro reprodutivo da mulher. 

    FH: Qual é a dica que você dá para quem nos lê?

    MA: Vamos por partes:

    Tratar de endometriose é tratar da mulher e não do órgão. Faz parte de um conceito terapêutico de tratamento integrativo, em que a paciente é observada como um todo, em 360º.

    Além disso, o tratamento da mulher com endometriose deve ser feito por especialistas, porque envolve muitos fatores associados e requer médicos que entendem muito da patologia para identificar e tratar os problemas.

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