• “A mulher é tão ou mais capaz de cuidar que o homem e, mesmo assim, seguimos em defasagem na progressão de carreira”, diz a pneumologista Letícia Kawano-Dourado

    A pesquisadora e pneumologista Letícia Kawano-Dourado
    Jose Renato Junior | 15 jun 2021

    A preocupação da pneumologista e pesquisadora Letícia Kawano-Dourado com a equidade de gênero é tão grande que virou até tema das aulas que a profissional ministra, agora diretamente da França, onde está desenvolvendo pesquisa. 

    Situações que presenciou ao longo de dezoito anos de experiência e algumas das quais foi vítima, inclusive, levaram-na a se tornar uma espécie de porta-voz da mulher dentro da área da saúde. 

    Para falar sobre o tema, além das aulas e palestras que oferece, ela criou o Projeto Respira Evidência – um blog em que procura, através de dados, pesquisas e simulações, explanar os fatores que atuam contra as mulheres e as impedem de crescer dentro da profissão. 

    Em sua página na internet, Letícia fala que uma pesquisa realizada pela Universidade de Toronto, no Canadá, constatou que um paciente operado por uma mulher tem 12% a mais de chance de sair de alta e estar vivo após 30 dias do que aqueles operados por cirurgiões do sexo masculino. 

    Argumenta-se que um pouco da explicação está na questão geracional, porque os cargos de liderança estão com as pessoas mais velhas e que, antigamente, não havia tantas médicas, como vemos atualmente. 

    Mas existe outro fator muito importante, tecla na qual Letícia bate bastante: a questão do viés subconsciente. 

    Ou seja, padrões mentais sistemáticos nos levam a fazer julgamentos que se apoiam na cultura e nas diferentes expectativas que se tem sobre os gêneros. 

    Ainda em seu blog, Letícia conta que várias pesquisas mostram que, de forma geral, espera-se que a mulher seja gentil, afetiva, acolhedora, e que o homem seja forte, autoconfiante, firme, dominante e que tenha ambição e controle – atributos que são procurados em alguém com perfil para se tornar um líder. 

    Mas, se essas mesmas características forem atribuídas a uma mulher, ela será vista como agressiva, difícil de lidar, ou mandona demais – é uma coisa cultural, acredita a pesquisadora.

    Além de abordar um assunto tão atual e fundamental como esse, o Projeto Respira Evidência traz notícias de interesse geral sobre a área de saúde, sempre com pinceladas de métodos científicos. 

    Duas qualidades levaram Letícia a optar pela medicina. Primeiro, o desejo de cuidar, de ajudar a aliviar a dor do outro. Depois, a curiosidade de entender o funcionamento do corpo humano e descobrir o porquê das coisas. 

    Foi justamente isso que a levou para o caminho da pesquisa clínica – e que também pode explicar a escolha da sua subespecialização: doenças intersticiais pulmonares, que são mais raras, e cujos diagnósticos requerem bastante pesquisa e investigação.

    Confira a entrevista que ela deu a Future Health:

    Em seu blog você fala sobre Medicina Baseada em Evidências. O que é isso exatamente? Podemos dizer que é uma maneira mais moderna de se tratar a medicina? 
    Medicina baseada em evidência [MBE] é diferente de evidência científica. Tem muita gente que se confunde e acha que MBE é você virar um robô que reproduz as características dos ensaios clínicos na sua vida real. Não é isso. A MBE é, na verdade, você integrar as evidências científicas. Por integrar, eu já estou supondo que você tem método científico mínimo para consumir aquilo, que você integra com sua experiência individual e com a preferência do paciente. A combinação desses três fatores é MBE. Por que isso? 

    Um ensaio clínico não necessariamente pode ser imediatamente extrapolado para a realidade.

    Isso porque há várias questões de magnitude de risco, benefício, custos, e isso precisa envolver o maior interessado: o paciente. Podemos dizer que é uma medicina mais moderna? Podemos dizer que sim, porque a forma com a qual a gente apreende – apreende mesmo – o efeito de medicações, de intervenções é com base num rigor metodológico que está mais bem consolidado dos anos 80 pra cá. Então, sim, é uma forma moderna de oferecer assistência aos pacientes.

    Você fala bastante sobre equidade de gêneros. O que acredita que as mulheres podem apresentar de diferencial no atendimento ao paciente?
    As mulheres são, primeiro, em termos biológicos, mais atentas às demandas, pelo fato do cuidar estar intrinsecamente ligado a nós. O segundo argumento vem da literatura, que é o fato de que as mulheres aderem mais às diretrizes de tratamento. Então eu vejo que a mulher é tão ou mais capaz do que o homem de cuidar e, mesmo assim, a gente segue numa defasagem enorme na progressão de carreira. No meu blog, trago evidências da literatura, pesquisa e simulações. 

    As simulações são as mais interessantes porque escancaram o viés de gênero. 

    Por exemplo: há uma simulação de um atendimento de emergência em que em um cenário o ator que interpreta o líder é um médico do sexo masculino e, no outro, uma médica do sexo feminino. Grava-se aquele script de atendimento, e se fornece para residentes para eles avaliarem a performance – que é exatamente a mesma, porque é um script. Mas quando avaliações de liderança, de confiança entram na jogada, a mulher perde pontos. Então é muito interessante. Eu já sofri muito preconceito. Não é que as pessoas são más, mas envolve coisas de cultura.

    Você já sentiu essa coisa tão comum a nós mulheres que é achar que tem que se preparar mais, que nunca está pronta de verdade – a tal da síndrome da impostora?
    Às vezes eu tenho a síndrome do impostor, mas não em relação aos homens, mas em relação a um lugar de pertencimento, de achar que algo está muito alto nível para eu estar lá, independentemente de gênero. Em relação aos homens, o que eu sinto é um aborrecimento de ver claramente a minha maior condição técnica, de gestão inclusive, e me ser negado aquele espaço por sei lá qual motivo. 

    Sobre a síndrome do impostor, o que eu percebo é que as mulheres, de forma geral, são muito mais exigentes com elas mesmas do que os homens. 

    Por exemplo: tem um estudo norte-americano mostrando que, quando se abre uma vaga de emprego e estão lá as características necessárias, uma mulher se sente preparada para aplicar e ocupar aquela vaga quando ela preenche 100% dos requisitos. Um homem, 60%. Eu nem acho que nós mulheres devemos ser como os homens, porque acho isso desleixo: 60% dos requisitos para mim não é estar preparado para uma vaga. 

    Mas eu acho que nós precisamos estar conscientes de que existem pessoas que são menos preparadas, mas mais confiantes. 

    E que nível de confiança não tem a ver com preparo. O segundo ponto é que eu acredito que a mulher precisa ser mais gentil consigo mesma. Ela não precisa ser perfeita.  Precisa, sim, ser suficiente – e o resto vamos aprendendo, porque ninguém chega pronto num cargo. Você chega suficiente e lá você vai aprendendo um monte de coisa. Mas não vejo o fato de que a mente feminina é mais exigente como um demérito. Inclusive, as pessoas que contratam deveriam estar alertas sobre isso, porque para um homem é muito mais fácil comer sardinha e arrotar caviar do que para mulher. Se ela fala em caviar, provavelmente ali tem caviar mesmo. 

    Falando sobre sua especialidade, que evoluções você tem visto surgir dentro da pneumologia durante este período de pandemia?
    É impressionante o desenvolvimento científico que a humanidade alcançou em dois anos. A gente parte do zero, sabendo nada sobre o vírus, para uma quantidade de informação acumulada absurda. Desde inovação no sentido de acelerar testes diagnósticos que a gente já tinha e criar novos testes diagnósticos até entender quais tratamentos funcionam ou não para Covid, entender a dinâmica de transmissão, relação com temperatura, umidade, uso de big data para prever explosão de casos. 

    No Brasil, infelizmente não se leva em consideração essas informações tão preciosas que estão sendo geradas por grupos de cientistas independentes, como a Rede Análise Covid, Observatório Covid-19, Infogripe

    Fora do país, o que a gente vê é o desenvolvimento de tomógrafo portátil; mensuração de citocinas, para achar uma assinatura que prevê Covid grave; desenvolvimento de teste genético de ponta de dedo para detectar a Covid… É cada coisa! O National Institute of Health, nos Estados Unidos, está com um programa de aceleração de ideias relacionadas à Covid. Vários grandes grupos se juntaram, cada um desempenhando uma função. A Emory University, em Atlanta, faz a triagem. Então a pessoa chega com uma ideia incrível e eles avaliam. Se passa pelo crivo, segue adiante para se analisar a questão da produção. São coisas sensacionais que a gente está vendo. Isso para não falar da vacina. O feito da vacina em tão pouco tempo é algo de se tirar o chapéu para o progresso científico.

    Você faz parte do painel da OMS na elaboração das Diretrizes de Tratamento da Covid19. Como você vê a atuação do Brasil no combate à pandemia?
    Infelizmente o Brasil é um exemplo de falha no combate a Covid. Óbvio que no começo, todo mundo sem informação, é natural que algumas medidas sejam desencontradas. O tal do uso da máscara, que diziam que não precisava usar fora dos hospitais, por exemplo. Mas, à medida que a gente vai ganhando informação sobre a doença, o que a gente vê é uma falha oficial do governo de abordar a Covid com as ferramentas que a gente sabe serem efetivas. Isso então está determinando uma cronicidade da Covid num patamar bem elevado no Brasil, com um saldo grande de mortes e pós-hospitalizações com bastante morbidade que poderiam ser evitadas.

    Em qual pesquisa você está envolvida atualmente? 
    Atualmente estou desenvolvendo meu projeto de pesquisa na França, onde estudo alterações genéticas relacionadas com a fibrose pulmonar que acontece na artrite reumatóide. Minha intenção é ganhar expertise em investigações genômicas para a gente levar isso para o Instituto de Pesquisa do HCor

    A integração de dados em genômica, em biomarcadores proteicos é o presente/futuro das grandes pesquisas. 

    E o IP HCor, como uma instituição de ponta e liderança, acompanha essas tendências. Além de mim, tem outros pesquisadores lá que estão trabalhando em incorporar esses fatores que há 10, 15 anos eram vistos como algo totalmente experimental, difíceis de incorporar na prática clínica, mas hoje nem tanto. No Brasil, eu sigo junto com o dr. Israel Maia no Projeto Renovate, fazendo investigação de suporte respiratório para insuficiência respiratória aguda, e no meu estudo Bertha, que é uma coorte prospectiva de artrite reumatóide no pulmão, em que a gente tenta entender quem são os progressores, quem não progride e por que progride. 

    Que notícia sobre sua especialidade você gostaria de ler amanhã no jornal?
    Eu ficaria muito feliz de ver no jornal que a pneumologia no Brasil é a especialidade com mais know-how, com mais capacidade de navegar literatura científica, e são os profissionais que, na Covid, estão aplicando da melhor forma a medicina baseada em evidência. Eu ficaria muito feliz de ler essa notícia porque isso se traduziria em um nível de qualidade elevado da prática da pneumo. A gente sabe que muitos colegas estão nesse nível, mas, infelizmente, não todos. E não só na pneumologia, infelizmente. 

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