• “A inclusão na educação é essencial para o pleno desenvolvimento de crianças neuroatípicas”, diz neuropediatra

    O pediatra Clay Brites é PhD em neurologia infantil e fundador do Instituto NeuroSaber
    Jose Renato Junior | 28 mar 2022

    O pediatra Clay Brites não faz medicina sozinho. Mais que atender em seus consultórios em Londrina e São Paulo, o PhD em neurologia infantil orienta escolas para lidarem melhor com alunos neuroatípicos, trabalha em Apaes e dá palestras e conferências sobre desenvolvimento infantil. 

    Clay é autor de diversos artigos científicos e dos livros “Como lidar com mentes a mil por hora”, “Mentes únicas”, “Crianças desafiadoras”, e “Como saber do que seu filho realmente precisa” – os três últimos em parceria com sua esposa, a pedagoga Luciana Brites. 

    Em 2014, os dois fundaram o Instituto NeuroSaber, voltado para divulgação de pesquisas relacionadas à área de neurodesenvolvimento e aprendizado. 

    A iniciativa, que hoje reúne mais de 750 mil seguidores nas redes sociais, nasceu online e se expandiu também para formações de pais e educadores de crianças neuroatípicas. 

    Seja em suas lives semanais ou em seus atendimentos, Clay ressalta a importância de conhecer as crianças e os adolescentes que trata. 

    E deixa clara sua crença na ciência – e no fato de que diagnósticos precisos se fazem em conjunto entre pais, professores e demais profissionais da área da saúde. 

    Em entrevista a Future Health, ele falou sobre inclusão, a relação entre educação e neurologia infantil, uso de medicamentos e o aumento dos casos de autismo e TDAH. 

    O que levou você até a neuropediatria?
    Desde o primeiro ano na faculdade de medicina, eu já sabia que queria atender crianças. Sempre gostei muito de crianças, sempre tive uma relação muito legal com elas, gostavam de estar comigo. Fiz a residência na Santa Casa de São Paulo, e ao final dos dois anos de pediatria, eu estava prestes a me decidir pela neonatologia. 

    Mas a minha esposa é pedagoga e sempre trabalhou na área de educação especial. 

    Ela falava: “Clay, eu acho que você se daria muito bem com neurologia infantil”. Na época, eu lembro que a demanda por especialistas em neurologia infantil na nossa realidade social era muito grande. Então resolvi fazer neurologia infantil, depois enveredei na área de avaliação multidisciplinar de crianças com problemas de comportamento, de aprendizagem e problemas relacionados ao neurodesenvolvimento. Eu me achei.

    O foco do Instituto Neurosaber são pais e profissionais de educação. Como você avalia o papel da educação no desenvolvimento de crianças neuroatípicas?
    Essencial! Porque um dos grandes problemas relacionados às crianças atípicas são as dificuldades cognitivas que elas apresentam, as dificuldades de autorregulação emocional e de comportamento, dificuldades de interação, de comunicação social e limitações na capacidade de atenção. E se a educação não estiver pronta para abraçar e acolher essas crianças seja na escola, seja em ambientes de intervenção, essas crianças, mesmo inteligentes e capazes, terão problemas de competência de leitura, escrita e matemática para o resto de suas vidas no ambiente escolar. 

    Então, não dá mais para separar o atendimento clínico do atendimento educacional. 

    Não dá mais para separar a inclusão da visão que o professor tem que ter sobre a aprendizagem escolar do neurodesenvolvimento infantil. Quando fui para essa área, eu já tinha plena noção de que não poderia ficar preso somente à medicina e à área clínica: eu tinha que estar pensando constantemente em paralelo com as demandas educacionais.

    Como era a inclusão escolar quando você começou na área e como enxerga esse cenário hoje?
    Sem dúvida houve progresso. Quando eu comecei, a inclusão nem sequer era uma hipótese. Era algo extremamente errático e que acontecia eventualmente, de forma voluntária em algumas escolas. Não havia uma legislação específica, não havia uma ideia de integração clínico pedagógica, não havia uma ideia de diagnóstico precoce de problemas de aprendizagem. 

    Com a lei da inclusão nos idos de 2007 – depois 2010 e 2014 com alguns processos que vieram na esteira dessas inovações colocadas no setor público no Ministério da Educação –, a ficha de muitos profissionais, tanto na área de educação quanto na área da saúde, foi caindo.

    A partir do momento em que você entende a cultura da inclusão, começa a observar a aprendizagem da criança na escola como um processo que precisa ser direcionado para suas habilidades. E não só as habilidades mais importantes, mas as menos importantes ou menos eficientes também. A inclusão é um processo que tem que existir não apenas como visão de uma educação voltada para as diferenças individuais. 

    Para muitas crianças, a inclusão significa passar pelo crivo de uma avaliação clínica e multidisciplinar.

    Tudo isso não era bem entendido até poucos anos atrás. Com uma maior compreensão dos processos neurocognitivos da infância, as inovações da neurociência junto com a neuropsicologia, com a neuropsicopedagogia e com outras áreas afins que foram se alinhando, os professores começaram a ter um interesse natural em ampliar um conhecimento que eles não tinham. O problema é que a graduação de pedagogia no Brasil não tem foco em neurociência, e o professor sai totalmente desprovido desses conhecimentos. 

    A vantagem é que toda essa efervescência trouxe uma nova perspectiva para os professores. 

    Antes, quando uma criança não conseguia aprender, achava-se que a escola era ruim ou os pais eram omissos. Hoje, os professores estão começando a se questionar se talvez essa ou aquela criança tem um transtorno de desenvolvimento, algum tipo de limitação cognitiva ou se apresenta problemas de comportamento que estão respingando no seu potencial intelectual. E além disso, sabem que é preciso fazer uma avaliação mais ampla e não somente dar diagnósticos precipitados sem qualquer tipo de fundamento.

    Falando em diagnósticos, transtornos neurológicos como autismo ou TDAH não aparecem em exames clínicos. Podemos dizer que a dificuldade do diagnóstico seja uma das grandes fronteiras para que esses indivíduos possam ter mais qualidade de vida?
    Apesar de não ter marcadores biológicos específicos, nós temos um aparato de dados clínicos e epidemiológicos, vários tipos de estratégias de avaliação que ajudam os especialistas a fechar os diagnósticos sem depender de exames específicos. Lógico que essa é uma das fronteiras, você tem razão. 

    Nós temos muita esperança de que no futuro tenhamos testes de imagem ou de laboratório que mostrem se um indivíduo tem TDAH, por exemplo. 

    Mas o fato de não termos, não justifica deixar de identificar essas crianças nos períodos mais precoces da vida. Hoje já existem vários critérios que nos permitem fazer o diagnóstico desses transtornos nos primeiros cinco, seis anos de vida.

    Poderia citar algumas das ferramentas usadas atualmente para fazer os diagnósticos?
    A conduta padrão para diagnóstico dos transtornos de desenvolvimento é, em primeiro lugar, uma boa entrevista com pais ou cuidadores. Eu preciso conhecer profundamente as características clínicas, cognitivas, comportamentais e do desenvolvimento de cada transtorno de neurodesenvolvimento. Segundo, um relatório bem feito pelos professores e educadores dessa criança. 

    Terceiro, avaliação neuropsicológica, fonoaudiológica e psicopedagógica tanto clínica quanto comportamental. 

    Dentro dessas análises existem testes específicos, instrumentos validados e muito bem estruturados para cada idade e perfil de comportamento. E, em quinto, o uso dos critérios diagnósticos do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que está na quinta edição, o DSM 5. A reunião desses cinco princípios ajuda a fechar um diagnóstico.

    É uma grande equipe envolvida.
    Sim, porque a avaliação deve ser multidisciplinar. Deve-se ter em mente que o mais importante é o perfil clínico e a observação do comportamento da criança em vários ambientes. É preciso conhecer profundamente quais são os principais prejuízos que normalmente cada um dos transtornos de desenvolvimento costuma causar.

    Por falar em diagnóstico, você acha que existe um aumento real na incidência de casos de autismo e TDAH? Ou são condições que hoje são mais fáceis de diagnosticar?
    A segunda opção é a mais provável, existe uma maior facilidade no diagnóstico. Mas nós não podemos esquecer que a população cresceu. E, dentro desse crescimento populacional, cada transtorno tem o seu lugar proporcional. 

    Pesquisas mostram que 6% da população infantil têm TDAH, 1 a 2% têm autismo, 2 a 3% têm deficiência intelectual, 4 a 5% têm transtornos de linguagem e comunicação. 

    Se a população está maior, nós vamos ter um aumento proporcional dentro dessas porcentagens. Segundo ponto importante: crianças prematuras, que nascem antes das 35 semanas de gestação e que têm baixo peso ao nascer, possuem de três a cinco vezes mais chances de apresentar qualquer um desses transtornos que estamos falando. Na época dos nossos avós, bebês prematuros morriam. Não havia tecnologia de UTI neonatal. 

    Hoje essas crianças sobrevivem, mas muitas delas sobrevivem com sequelas ou com intercorrências devido a todo o processo de luta pela sobrevida. 

    Outro fator que está contribuindo para o nascimento de crianças com transtornos de neurodesenvolvimento: as pessoas estão tendo filhos cada vez mais velhas. Nós sabemos que a idade materna e paterna acima dos 40 anos aumenta o risco das crianças nascerem com síndromes genéticas ou com transtornos de neurodesenvolvimento.

    Apesar dos homens seguirem férteis, a idade que eles se tornam pais também interfere?
    Sim, diversas evidências científicas mostram que o homem acima dos 40 anos também têm mais chances de ter filhos com problemas de desenvolvimento. Os casais estão ficando mais propensos a terem filhos cada vez mais velhos. 

    Em 2019, a Folha de S. Paulo publicou uma pesquisa mostrando que nos últimos 20 anos houve um aumento de 65% das gestações de mulheres acima dos 35 anos. 

    Essa é uma comprovação de que as gestações estão ocorrendo mais tarde, porque as pessoas querem ter suas carreiras bem estruturadas e atingir seus objetivos para depois constituir família. Mas o tempo biológico não respeita o tempo social, nem o tempo profissional. O tempo biológico é crucial. Acima dos 35 anos, crescem os riscos de complicações e de ter filhos com problemas de desenvolvimento.

    Desde a década de 90, vemos um crescimento na quantidade de crianças que utilizam medicações psiquiátricas. Existe, inclusive, um projeto na Câmara dos Deputados contra o afrouxamento nas regras para prescrição. Como você vê esse fenômeno? 
    Temos que alinhar várias questões. A primeira é o grau de neurobiologia dos transtornos neuropsiquiátricos. Existem transtornos neuropsiquiátricos em que o grau de comprometimento neurobiológico associado é muito pequeno. E, nesses casos, o uso de medicação pode até não ser indicado. 

    Nem é preciso medicar boa parte dos transtornos de ansiedade na infância, por exemplo. 

    Basta uma boa estratégia de terapia, professores e pais que se dediquem a criar mecanismos preventivos, educativos e sociais que deem conforto a essa criança. Entretanto, TDAH, hiperatividade, esquizofrenia, transtorno obsessivo-compulsivo e bipolaridade são transtornos muito neurobiológicos, de natureza biogênica muito forte. E nesses casos a medicação é importante. A chance de uma pessoa com uma dessas condições precisar de medicação em algum momento da sua vida é de 80 a 90%. O segundo ponto é que nossa sociedade exige resolução rápida. 

    Se pensarmos em uma criança que apresenta um transtorno que a impossibilita de ir para escola, porque ela está em crise, como é que eu não vou medicar? 

    Quando essa criança vai voltar para a escola? Como posso ajudá-la a retomar sua vida funcional, se muitas vezes não utiliza medicação? Há casos de crianças autistas com crises imensas cujos pais entram em desespero e não podem nem sair de casa. Como que eu não vou usar a medicação? É preciso ter cautela com essa discussão sobre um possível afrouxamento da legislação na Câmara. 

    Nós temos que entender que medicação não deve ser banalizada. 

    Mas mais do que pensar no afrouxamento, precisamos melhorar os serviços de avaliação e de intervenção, pensar em políticas públicas voltadas para dar o melhor suporte possível para a população. Dessa forma, boa parte do suporte que daremos para criança pode dispensar a medicação. Mas, se temos um sistema público ruim para diagnóstico e tratamento, deixaremos essas crianças e esses adolescentes cada vez mais à mercê de tratamentos baseados em medicação. 

    Que notícia você gostaria de ler sobre sua especialidade no jornal amanhã?
    “Governo federal passa, a partir de hoje, a formar e atualizar todos os professores da rede pública em neurociência, neuroaprendizagem e neurodesenvolvimento.” Essa seria, sem dúvidas, a prova de que cumpri minha missão.

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