Ao se tornar pai, em 2016, o jornalista Daniel Schneider mergulhou de cabeça em um universo que o apaixona desde a infância e a juventude: a genética. A jornada, contudo, não foi brincadeira: uma condição de saúde não identificada em seu filho Benjamin forçou o recém-nascido a viver seus primeiros dois meses em uma UTI neonatal, passando por cirurgias e tratamentos que quase lhe custaram a vida.
Atualmente, Benjamin segue seu desenvolvimento normalmente, sem sobressaltos, e Schneider também: no começo de 2024, estreou o canal DNA Dan, no YouTube, em que divulga conhecimento científico sobre genômica, traduzindo a sopa de letrinhas do DNA humano em um conteúdo palatável e saboroso para quem quer aprender mais sobre como funcionamos.
O que não estava previsto ou codificado em nenhum algoritmo, é que ao fazer um teste genético completo dele mesmo, da mãe de Benjamin e da própria criança, Schneider diagnosticaria, sem ser médico, uma patologia grave que passou batida no nascimento do filho – e que o popular “teste do pezinho” deveria ter indicado.
Benjamin nasceu com fibrose cística, que nenhum teste ou observação de profissionais de saúde identificou.
A notícia, ainda que tardia, despertou em Schneider uma urgência para contar esta história particular em detalhes, no seu próprio canal, a fim de alertar as pessoas sobre a importância de fazer um mapeamento genético completo para cuidar da saúde – e propor que o sistema de saúde ofereça esse serviço a todos.
Acompanhe a conversa que tivemos com o jornalista sobre essa trajetória:
FUTURE HEALTH: Você tem formação em jornalismo e linguística, mas sempre foi fascinado por genética. Como essa paixão se manifestou na sua vida profissional?
DANIEL SCHNEIDER: Sempre tive ligação com a ciência, desde quando escrevia para a revista Superinteressante. Cheguei a pensar até em seguir medicina, mas meu pai, que é médico, me desaconselhou. Isso me fez seguir outro caminho, mas a paixão pela genética nunca foi embora. No fundo, sempre busquei maneiras de conciliar a comunicação com minha curiosidade científica.
Meu canal DNA Dan, no Youtube, foi a forma que encontrei para dar vazão ao interesse por genômica, especialmente porque a área está crescendo e se tornando mais relevante.
Comecei a participar de grupos sobre genética para genealogia e saúde, o que me ajudou a construir uma reputação como alguém interessado e que informa sobre o tema. Lançamos o canal em abril de 2024 e, em apenas seis meses, conseguimos mil inscritos e já estamos com metade das horas de visualização para monetizar. O próximo passo é expandir isso para um blog, onde vou fornecer conteúdo de apoio e também alguns serviços relacionados a bioinformática.
FH: Dentro desse envolvimento com a genômica, você passou por uma situação que envolve a saúde do seu filho. Como isso o levou a investigar ainda mais a genética e a medicina?
DS: Meu filho nasceu com algumas complicações. Ainda durante a gestação, um dos pontos que chamaram nossa atenção foi o fato de a vesícula biliar não ter sido visualizada nas ultrassonografias. Os médicos nos tranquilizaram, mas algo me dizia para continuar investigando. Outra coisa que devia ter aparecido nos ultrassons mais próximos do nascimento é o mecônio, que é o primeiro cocô do bebê.
Pois, logo depois do nascimento, ele não evacuou e, após exames de imagem, chegou-se a um consenso de que era um caso cirúrgico. Porém, só na mesa de cirurgia, ao abrirem meu filho, foi identificado que se tratava de um íleo meconial, que é uma obstrução do intestino delgado em recém-nascidos, causada por um mecônio com consistência diferente.
FH: E a cirurgia correu bem?
DS: O diagnóstico tinha sido errado, mas a cirurgiã adaptou a cirurgia na hora e concluiu com sucesso. Entretanto, houve uma intercorrência grave.
Dois dias depois da cirurgia, Benjamin teve um choque séptico. Ficou num estado de saúde gravíssimo e passou 64 dias na UTI.
Ao longo desse período, foi aberto mais uma vez, por suspeitarem de uma perfuração intestinal – que, felizmente, não havia, mas era a única maneira de saber –, tomou remédios fortíssimos, recebeu transfusões de sangue, além de antibióticos de amplo espectro, que impediram o desenvolvimento de sua flora intestinal. Aliás, considero esse conjunto de fatores como uma possível causa do autismo que ele apresenta.
FH: E como foi o pós-operatório?
DS: Lembra que contei sobre a vesícula não ter sido visualizada nos ultrassons? Eu já havia pesquisado sobre essa condição e sabia que havia alta correlação entre ela e a fibrose cística. A identificação do íleo meconial no momento da cirurgia era outro forte indicativo.
Contudo, quando fizemos o teste do pezinho, deu negativo para fibrose. Era um falso negativo, mas ninguém sabia disso. Nem os médicos.
A questão é que, no caso dele, a fibrose cística se manifestou apenas com sintomas gastrointestinais, e não respiratórios, como é comum. Por isso, e como a doença havia sido descartada no teste do pezinho, o diagnóstico não apareceu e os médicos investigavam outras possibilidades.
FH: E como se deu, finalmente, o diagnóstico de fibrose cística?
DS: Tranquilizados pelos profissionais, seguimos normalmente com a vida e até fizemos um teste genético simples, desses de ancestralidade. Eles não são completos, mas avaliam as variantes mais comuns de fibrose cística. Esse teste avalia as 20 mais prevalentes. Nem eu nem a mãe do Benjamin tínhamos nenhuma dessas variantes comuns. Então, ficamos tranquilos.
Só que o Benjamin, embora não apresente os sintomas respiratórios associados à fibrose cística, tem vários sintomas gastrointestinais. Ele sempre teve dificuldade de digestão, que eu atribuía à alteração na flora intestinal. Mas hoje sabemos que o que ele tem é uma insuficiência pancreática grave, que felizmente é remediada com a ingestão de uma enzima chamada pancreatina antes de cada refeição.
Anos depois, fizemos, por curiosidade, um outro teste genético, dessa vez, mais completo. Primeiramente, procurei marcadores relacionados ao autismo. A tarefa é árdua, pois são milhares deles. Mas olhando para os indicadores mais comuns, não encontrei nada – o que reforça minha suspeita de que se trate de algo relacionado ao período que ele passou entre a vida e a morte no hospital, ainda nas primeiras semanas de vida.
Só que, curioso que sou, com o genoma inteiro do Benjamin, da mãe dele e o meu à disposição, lembrei de procurar os marcadores relacionados à fibrose cística. E, para surpresa de todos, as variantes patogênicas estavam lá.
Fizemos, então, o teste do suor e o diagnóstico foi confirmado. Na ocasião, os médicos envolvidos (desta vez os especialistas na doença) mencionaram que, em caso de íleo meconial, é comum o teste do pezinho apresentar falso negativo para fibrose cística. Enfim, essa é uma informação que os médicos na maternidade deveriam saber, mas é complicado, né? Além de ser uma ocorrência rara, os profissionais de saúde não têm toda informação do mundo na cabeça.
FH: Vem daí sua sugestão para que sistema de saúde intensifique o uso da genômica e da inteligência artificial como ferramentas para os médicos?
DS: Sim, exatamente. Sugiro ali no vídeo, inclusive, que, agora que temos diversas inteligências artificiais (IA), seria importante implementar versões adaptadas especificamente para o uso médico.
Assim, em vez de exigir ou esperar que o médico absorva todas as informações possíveis, o que é inviável, porque ele é um ser humano, seria mais útil treinar uma IA para auxiliá-lo.
Pegando o caso do Benjamin como exemplo, um auxílio de IA poderia ter evitado muito sofrimento. O íleo meconial, assim como a fibrose cística, poderiam ter sido diagnosticados mais cedo, a insuficiência pancreática poderia ser tratada desde o início de vida também. O ganho de peso e o desenvolvimento provavelmente teriam corrido na normalidade e, eventualmente, até o autismo poderia não ter ocorrido, ou ter se manifestado de maneira mais branda. Ou seja, uma série de prejuízos poderia ter sido evitada por um conhecimento maior, que a IA poderia trazer, sobre a ocorrência de falsos negativos no teste do pezinho e sobre outros dados específicos que os médicos não têm como conhecer em sua totalidade.
Em relação à genômica, o Reino Unido já começou um projeto piloto para avaliar a possibilidade de mapear o genoma completo de todo recém-nascido – ou ao menos o exoma (teste que busca por alterações no DNA que causem patologias). Embora uma medida dessas possa parecer cara e inviável, sobretudo considerando um país de dimensões continentais como o Brasil, na verdade há um potencial promissor de economia e de qualidade de vida para a população.
Obviamente há o custo, mas que deve ser avaliado como um investimento, já que os diagnósticos preventivos são peças fundamentais para uma medicina de precisão e cada vez mais personalizada. É importante lembrar que terapias preventivas são mais baratas do que as corretivas. E os dados gerados a partir dessa coleta de DNA de todos os indivíduos – devidamente protegidos, claro – são valiosos e estratégicos para definir políticas em saúde pública que façam o dinheiro do contribuinte retornar em longevidade e qualidade de vida.
FH: E como fica o tratamento do Benjamin agora?
DS: Além da pancreatina, ele tem tomado vitamina K e suplementos importados feitos especificamente para a doença. Está super bem. O que ele precisa agora é ter acesso a moduladores gênicos, medicamentos modernos que conseguem desentortar as proteínas envolvidas na fibrose cística e praticamente corrigir o problema no dia a dia.
Já li, inclusive, sobre casos de pacientes precisando de transplante de pulmão ou em fases terminais que se recuperaram totalmente após receber os moduladores. Como as variantes genéticas que o Benjamin apresenta são raras, elas ainda não constam no rol de variantes liberadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para acessar o medicamento. Mas temos notícia de que uma lista atualizada já foi enviada para aprovação e estamos esperançosos.
Sendo bem sincero, tenho esperança até de cura da fibrose cística por edição gênica – algo que já existe para anemia falciforme e talassemia beta.
Sei que em breve haverá edição gênica para fibrose cística. Mas eles devem começar pelas variantes mais comuns. Conversei com o time da Jennifer Doudna, bioquímica que ganhou o Nobel de Química em 2020 pelo desenvolvimento da edição genética CRISPR. Eles não gostam de dar previsão, lógico, mas como acompanho o noticiário e a velocidade da evolução tecnológica em edição gênica, arrisco dizer que em poucos anos a fibrose cística será tratada, com eficácia, dessa maneira.