• “Muitos questionaram a cirurgia robótica. Hoje, o robô é meu parceiro”, diz pioneira em transplantes de fígado

    Ana Olga Nagano
    Ana Olga Nagano, gastroenterologista do Hospital Moriah (Foto: Divulgação/Hospital Moriah)
    Jose Renato Junior | 3 jun 2022

    Em 2021, a gastroenterologista Ana Olga Nagano participou da série documental O Hospital, produzida pela rede Record, que seguiu médicos de diferentes especialidades, revelando os bastidores do hospital Moriah, no bairro de Moema, em São Paulo. 

    A energia, o carisma e o profissionalismo de Ana Olga não passaram batido. O público acompanhou a médica em consultas e cirurgias, a viu tocando piano, conheceu seu cachorro Fox e se comoveu com os pacientes que chegavam até ela em busca de tratamentos de ponta, mas, sobretudo, de cuidado humanizado.

    Ana Olga é referência em procedimentos robóticos e hepáticos. Ela conta com auxílio desses aparelhos em 90% dos procedimentos que faz. 

    A médica, especializada em transplante de fígado, coloproctologia, gastroenterologia, cirurgias bariátricas e metabólicas, defende a robótica porque ela oferece mais segurança, precisão e mobilidade às cirurgias, incluindo acesso a locais até então difíceis de operar. Além disso, minimiza o tempo de internação, gera cicatrizes menores e dá aos pacientes a possibilidade de um pós-operatório menos doloroso.

    Em um bate-papo com FUTURE HEALTH, Ana Olga relembra sua trajetória profissional e declara que a medicina é seu hobby e, ao mesmo tempo, o centro de sua vida:

    FUTURE HEALTH: O que te levou a ser cirurgiã? E o que te interessou na área de cirurgia do aparelho digestivo?

    ANA OLGA NAGANO: Durante toda a faculdade eu quis fazer cirurgia plástica. Me formei em 1989, em Vassouras (RJ). Fui monitora de anatomia desde o segundo ano, dei aulas de anatomia e acompanhava um cirurgião plástico que era auxiliar do professor Ivo Pitanguy. Eu ia muito ao Rio, acompanhá-lo. Mas quando entrei na USP para a residência, fiz dois anos de cirurgia geral e depois três anos com foco em fígado. 

    FH: Como aconteceu essa mudança?

    AON: Na cirurgia geral, era comum abrirem o abdômen e quando o paciente tinha um nódulo no fígado, mesmo que fosse só em um lado, o cirurgião simplesmente fechava a barriga. O paciente era considerado inoperável e encaminhado para a oncologia. Aquilo foi me deixando intrigada. 

    No final da década de 1980, início de 1990, o fígado era um desafio. E conforme eu me interessava por ele, a plástica foi perdendo o sentido. Fiz três anos de cirurgia no Hospital das Clínicas (HCFMUSP). 

    Em 1993, eu era médica preceptora e fui para Pittsburgh (EUA), passar nove meses fazendo um estágio com o professor Thomas Starzl, na Universidade da Pensilvânia. Ele foi o pioneiro em transplante de fígado no mundo. 

    Acho que o que me atraiu para a área foi o fato de ninguém operar fígado. Era algo tão desafiador que no HC o departamento de fígado era apelidado de Nasa. Havia uma disciplina de cirurgia experimental e eu fiquei lá para fazer minha residência.

    Na sequência, fiz meu doutorado, também no HC, orientada pelo professor Sérgio Mies. Foi um projeto financiado pela Fapesp em que eu comparava duas técnicas de transplante de fígado. 

    Não segui carreira acadêmica porque meu ex-marido era professor lá e só de ouvir o que acontecia, fiquei traumatizada. Depois disso, comecei a trabalhar no hospital Albert Einstein e, em 2 de Janeiro de 2002, fiz o primeiro transplante de fígado do grupo pelo SUS. 

    FH: Você foi a primeira mulher na América Latina a fazer transplante de fígado. Como foi isso?

    AON: Na verdade, a primeira cirurgia de transplante de fígado que eu fiz foi em setembro de 1995. E o fato de ser mulher foi muito desafiador, porque eu fiz faculdade fora do HC, eu não era da casa, era uma mulher na cirurgia geral, o que já era uma coisa complexa. 

    Na volta da Pensilvânia, eu até brinco que me deixaram na geladeira. Não me deixavam fazer. Quase voltei para os EUA, porque era uma realidade em que havia só dois cirurgiões no grupo. Mas, depois de fazer o transplante em setembro de 1995, passei a ser chefe de equipe.

    FH: Você também é pioneira na aplicação da robótica médica. Como foi começar a operar com robô? 

    AON: Comecei a operar com tecnologia robótica em 2010. Em 2016, eu e outros colegas, como Carlo Passerotti, Alexandre Silva e Silva e Eric Thuler, montamos um centro avançado de robótica no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. 

    À época, o doutor Alexandre Teruya, que é meu anestesista há 23 anos, me convidou para vir para o Hospital Moriah, mas aqui não tinha robótica. Depois de algumas cirurgias, eu pedi para comprarem o robô Da Vinci XI. 

    Ele foi o primeiro da América Latina, é um robô supercompleto, nós todos utilizamos. Nós, os cirurgiões cardíacos, os ginecologistas, os ortopedistas, todas as especialidades. 

    O robô Da Vinci XI é o que mais trabalha no Brasil: de segunda a segunda, com uma média diária de quatro a seis cirurgias.

    FH: Durante o seriado, ficou nítido que você recebe casos complexos, pessoas que já haviam tentado de tudo e perdido as esperanças…

    AON: Sempre digo que a missão do médico é tratar, amparar o paciente e se possível curá-lo. Quando você recebe esse paciente com tumores, desenganado, que tem mil traumas e limitações, que não tem mais vontade de viver por causa da doença ou de sequelas decorrentes de cirurgias, você tem que fazer o melhor e se preparar para casos assim. 

    Depois de 33 anos de formada, atendendo um volume tão grande de pacientes, vão aparecendo casos que outros médicos não querem por insegurança, por não estarem ou não se sentirem preparados. 

    Claro que existem coisas para as quais é impossível se preparar. Mas se é possível, se há uma chance, temos que tentar. Sempre esclarecendo todo o processo, o que pode acontecer, dialogando com a família e o paciente. Enquanto eu tiver força e me sentir segura, vou tentar.

    FH: E você sente falta de fazer transplantes?

    AON: Sinto e acho que todo mundo que já fez, sente também. 

    Porque o transplante de fígado é a maior cirurgia da medicina moderna. 

    É por isso que quando a gente entra em um abdômen, faz pancreatectomias, colectomias, faz todas as cirurgias abdominais. Então não é só fígado, fazemos hérnia, refluxo, bariátricas, cirurgias metabólicas por obesidade tipo dois, vesícula, baço, pâncreas, diverticulite, tumores… 

    O transplante sempre foi um desafio e estou muito feliz, porque no final do ano passado o hospital Moriah foi aceito para realizar transplantes de coração e de fígado, só falta o Sistema Nacional de Transplantes assinar. Estou torcendo para que possamos fazer logo, porque já tenho dois pacientes prontos.

    E, na verdade, o fígado nunca me deixou. Porque, além de cirurgia, faço bastante parte clínica. Eu trabalho com tubo digestivo, mas o fígado sempre está presente e as comorbidades e doenças relacionadas a ele também. Não adianta, é tudo interligado.

    Um divisor de águas na minha trajetória foi a robótica. Estou há 12 anos no robô fazendo todo o tipo de cirurgia digestiva. O robô é meu parceiro, meu aliado. Muito do que faço seria impossível fazer por videolaparoscopia. 

    A robótica é uma realidade, muitos questionaram e criticaram, por não ter a humildade de conhecer, estudar, se aperfeiçoar, até mesmo de não querer pagar os cursos. 

    FH: A cirurgia metabólica é capaz de curar a diabetes tipo 2?

    AON: Dependendo do caso, sim. O paciente fica sem medicação. Quando o tratamento medicamentoso é falho, tanto os orais quanto a insulinoterapia, dependendo da idade e das comorbidades de cada um, é possível ficar sem insulina. Alguns tomam um comprimidinho só, outros ficam sem nada. 

    E, junto com isso, se resolvem vários problemas. É uma transformação de dentro para fora. O paciente vai perder a circunferência abdominal. Então, ele para de roncar, para de ter apneia do sono, ele dorme bem. Consequentemente, vai ficar menos irritado, menos ansioso, menos depressivo. 

    No dia seguinte, ele consegue focar nas suas atividades, dar mais atenção para a família, melhorar os relacionamentos e render no trabalho. Muitos deixam de tomar antidepressivos, ansiolíticos, remédios para pressão. A mesma coisa acontece com a cirurgia bariátrica: o paciente nasce de novo.

    São cirurgias que resolvem muitos problemas e, quando bem realizadas, com um bom acompanhamento, alguns pacientes até me falam “doutora, eu só me arrependo de uma coisa: de não ter feito isso antes.” 

    No transplante de fígado isso também acontece. Vejo pacientes que estavam totalmente depreciados, em casa, emagrecidos, com coceira, sem ânimo, com muitas comorbidades. Não se relacionavam mais, tinham encefalopatia, estavam confusos, não tinham mais musculatura nem para andar. 

    Você troca o fígado, e a pessoa renasce. É muito interessante. Acho que, indiretamente, alguma coisa me fez trilhar esse caminho e trabalhar com renascimentos.

    FH: Você opera por horas todos os dias, fica no consultório até a meia-noite. Como fica a sua vida pessoal?

    AON: A minha vida é essa. Eu vou para casa para dormir, venho passar visita no final de semana. Eu gosto disso. Acho que se nascesse de novo, seria assim, do mesmo jeito. 

    Claro que tem críticas familiares, porque as pessoas acham que eu trabalho demais. “Por que você trabalha tanto? Você não tem filho”. Ué, você tem que trabalhar só porque você tem filho? É aquela cobrança, com respeito e com preocupação também. Meus pais são falecidos e meus irmãos e sobrinhos moram no interior de São Paulo, e eu viajo bastante para visitá-los. 

    Ana Olga Nagano
    Ana Olga Nagano também é pianista e mostrou suas habilidades musicais no seriado O Hospital. (Foto: Divulgação/Hospital Moriah)

    Minha vida é a medicina, mas eu gosto de tocar piano, de cozinhar, de cuidar das minhas plantas, da minha horta. E tenho um cachorrinho que é a minha alegria. Eu até queria ter um pouco mais de tempo, mas é muita gente, muitos atendimentos. São dois meses de espera para uma consulta. Eu sou uma pessoa extremamente ativa. 

    O meu hobby é fazer melhor o que eu faço, ajudar o paciente a ter um bom resultado, mudar a vida dele, resolver o problema. 

    Eu vibro, ainda tenho essa energia do primeiro ao último paciente. Às 11 horas da noite vou atender da mesma forma, com o mesmo entusiasmo.

    FH: Quem viu a série percebeu que você tinha afeto com os pacientes, que se envolvia com eles. Você é assim com todos que atende?

    AON: Com todos. Uns mais, outros menos, porque é do ser humano. Mas se o paciente está aqui e quer verdadeiramente resolver, eu fico envolvida. Vou ficar até o fim, ou até quando ele não quiser mais vir aqui. Tenho pacientes que acompanho há mais de 28 anos. 

    Vou operar agora um paciente cuja família acompanho há 20 anos. Não podia deixar de operá-lo. 

    Já tive pacientes que moravam na favela e já atendi filho de presidente da República. Mas todos são tratados da mesma forma. O que diferencia os médicos é esse vínculo com os pacientes, é algo muito forte. Não sei fazer diferente, não sei ser menos. 

    Tem pessoas que têm asco de chegar perto da doença, nojo de bolsa de ostomia. Isso é uma coisa muito natural na minha vida. Alguém tem que fazer. A vida passa muito rápido. Não adianta você ficar inventando que você é fulano ou ciclano. Não dá tempo para fazer isso.

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