• Este cientista estuda um psicoativo isolado da ayahuasca com potencial para se tornar medicamento antidepressivo

    Dráulio Barros de Araújo é professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
    Jose Renato Junior | 30 mar 2022

    Os mistérios do cérebro humano sempre fascinaram e despertaram a curiosidade do cearense Dráulio Barros de Araújo. Hoje, aos 50 anos de idade, ele inicia uma pesquisa científica para entender se o DMT isolado tem efeitos antidepressivos semelhantes ao que já descobriu sobre essa mesma substância combinada a outras, na composição da ayahuasca.

    Se bem-sucedido, o estudo pode originar um inovador medicamento antidepressivo. “É possível”, diz Dráulio, com o típico jeito cientista de não cravar verdades absolutas nem precisar quando novas descobertas ocorrerão. 

    Desde criança, Draulio queria ser cientista. Filho de mãe química e de pai físico, nascido em Fortaleza, o mais velho de cinco irmãos lembra de certo dia, em 1986, quando todos de casa acordaram às 3h da madrugada para avistar o cometa Halley passar. “A ciência sempre fez parte da nossa rotina”, lembra o pesquisador. 

    Mas foi só depois de seu doutorado em Física Aplicada à Medicina e Biologia, e um pós-doutorado em Radiologia, ambos na Universidade de São Paulo (USP), concluídos em 2002, que ele encontrou um tema para se aprofundar: os estados meditativos e alterados da consciência. 

    Convidado para integrar a equipe de professores do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN), ele vive em Natal desde 2009, com a esposa dentista e a filha de 13 anos. Já morou em 13 diferentes cidades, por mais de um ano, entre Brasil e Estados Unidos.  

    Ribeirão Preto, no interior paulista, foi uma dessas moradas, onde ele experimentou pela primeira vez o chá da ayahuasca, também chamado de Santo Daime, mesmo nome de uma doutrina espiritual. 

    De lá pra cá, se passaram 17 anos, mais de 30 experiências pessoais com ayahuasca, dois conjuntos de estudos científicos concluídos sobre os efeitos da bebida, e uma participação em documentário da Netflix (“A Indústria da Cura”, episódio 5).

    A ayahuasca é consumida em práticas religiosas há quase 100 anos no Brasil. E evidências arqueológicas revelaram que a bebida faz parte de rituais indígenas na Amazônia há 5 mil anos. 

    Segundo estudos científicos, a substância é segura para a saúde física, mas ainda não recomendada para pessoas que têm transtorno afetivo bipolar ou esquizofrenia, ou com histórico na família – sob risco de desenvolver surtos psicóticos. Assim como outros psicodélicos.

    ESTADOS MEDITATIVOS E ALTERADOS DE CONSCIÊNCIA

    Praticante diário de ioga desde 2003, da linha Sivananda, há uma década Dráulio Araújo leciona a disciplina de Neurociência Cognitiva e Yoga – e já participou de vários estudos da tradicional prática integrativa mente-corpo indiana. 

    Um exemplo é uma pesquisa recente sobre o efeito de uma prática respiratória da ioga, o bhastrika pranayama, na redução da ansiedade. 

    Ele é professor também da disciplina Psicodélicos, recém-lançada em 2022, na qual fala sobre enteógenos – plantas capazes de alterar a consciência, além de outras substâncias psicoativas. 

    Ambas as disciplinas integram o Programa de Pós-Graduação em Neurociências do ICe-UFRN, mas atraem, além dos alunos da Escola de Ciência e Tecnologia, estudantes das faculdades de Psicologia, Medicina e Biomedicina.

    Confira a seguir a conversa de Dráulio Araújo com Future Health

    Porque você resolveu estudar sobre ayahuasca? 
    Comecei a trabalhar com pesquisa e com ayahuasca em 2006, quando era professor de Física Médica na USP de Ribeirão Preto. Eu me especializei em técnicas de neuroimagem, que são capazes de avaliar as características de estrutura e funcionamento do cérebro humano de maneira não invasiva: a imagem funcional por ressonância magnética, a eletroencefalografia e a magnetoencefalografia. 

    Comecei a trabalhar com projetos de assuntos distintos ligados às neurociências, como regulação emocional e na compreensão de processos cognitivos para entender como o cérebro humano trabalha atenção e memória. 

    E passei a utilizar essas técnicas do ponto de vista clínico, trazendo apoio para pacientes com epilepsia e para pacientes com AVC. Eu tive um aluno de doutorado na época, o Thiago, que sempre falava muito sobre ayahuasca. Ele frequentava uma igreja do Santo Daime, até que eu resolvi ir conhecer. E aí foi quando eu decidi, junto com ele, usar as ferramentas que a gente dominava na época para entender um pouco melhor os efeitos da ayahuasca no cérebro humano.

    Como foi essa sua primeira experiência pessoal com ayahuasca? 
    Fui de uma maneira completamente ingênua, sem saber o que esperar, no dia 2 de novembro de 2005. Achava que seria de 21h à meia noite, geralmente o horário que eles fazem. Mas era dia de Finados, quando eles fazem um trabalho especial de noite inteira. Então foi de 9h da noite até 6h ou 7h da manhã. 

    Foi muito intenso, como geralmente passaram a ser as minhas experiências com ayahuasca, sempre muito intensas. 

    Quando já tinham passado os efeitos, eu sentia vários elementos da experiência, as imagens, o medo, a satisfação, tudo muito parecido com um sonho. Mas o que me chamou muita atenção primeiro foi o status de realidade daquelas experiências. Para mim aquelas experiências até hoje são tão reais quanto a experiência que a gente está vivendo conversando aqui agora. 

    Esse status de realidade que aparece durante a experiência com ayahuasca para mim foi muito surpreendente, muito semelhante ao que acontece com um sonho. 

    Num sonho, enquanto ele acontece, aquilo é real, mas, quando você acorda, desconstrói o senso de realidade que você tinha daquele sonho – e, se for ruim, sente graças a Deus que aquilo foi só um pesadelo. A diferença que eu vi com ayahuasca é que, quando despertei, quando saí daquele estado alterado de consciência, o status de realidade que eu vivi na experiência não deixou de ser real. E para mim não foi uma experiência transformadora, como você ouve de algumas pessoas. A partir daquele momento eu não virei outra pessoa. Foi uma experiência muito tranquila, mas que ficou reverberando, e ainda reverbera até hoje, de alguma maneira. 

    Eu saí daquela sessão com a clareza de que eu poderia utilizar as técnicas que dominava para tentar entender um pouco melhor aqueles efeitos muito surpreendentes. 

    Uma maneira de conseguir chegar a um estado alterado de consciência de forma mais controlada do que o sono ou o sonho, que também são estados alterados de consciência. Não consigo controlar quando você vai ter um sonho. Com o estado alterado de consciência induzido por uma substância psicodélica, você já tem um controle mais fino de quando a pessoa vai chegar naquele estado.

    O que você descobriu no primeiro estudo a partir de então? 
    Nesse primeiro conjunto de estudos a gente se associou a uma igreja do Santo Daime lá em Ribeirão Preto e recrutou voluntários com bastante experiência no uso da ayahuasca. Trouxemos esses indivíduos para o hospital e os colocamos dentro de uma máquina de ressonância magnética para avaliar o cérebro dessas pessoas enquanto elas estavam sob o efeito da ayahuasca. Queríamos estudar o estado alterado de consciência. 

    O evento fisiológico que temos familiaridade que está mais próximo aos efeitos da ayahuasca é [das visões de] um sonho, e não uma alucinação. 

    Eu diria inclusive que alucinação não é uma palavra boa de utilizar, porque alucinação é um quadro patológico e não se resolve rapidamente, não é transitório, e num quadro de alucinação se tem os efeitos com olhos abertos. Na experiência com ayahuasca os efeitos visuais acontecem quando você está de olhos fechados, principalmente. 

    Identificamos o aumento de interocepção – que é a habilidade de conseguir estar ciente dos seus próprios pensamentos e das suas próprias emoções e sentimentos. Olhar de dentro mesmo, refletir, introspectar.  

    Se eu perguntar agora o que você está pensando e o que você está sentindo você vai ter de parar e pensar. As pessoas têm diferentes habilidades e podem desenvolver diferentes habilidades. Por exemplo, com anos de meditação você vai ganhar uma maior habilidade de introspecção, de prestar atenção nas próprias emoções. E as substâncias psicodélicas também parecem modular essas habilidades. Quando você está sob o efeito de uma substância psicodélica, amplia a sua visão de prestar atenção nos seus próprios pensamentos e nas suas próprias emoções. 

    O que motivou as pesquisas seguintes e qual foi o objetivo dos novos estudos?
    Quando a gente estava lá na igreja, recrutando os indivíduos [para o primeiro estudo], as pessoas passaram a nos procurar espontaneamente para dizer que elas tinham encontrado um benefício terapêutico nas sessões com ayahuasca. Tinham melhorado de um quadro de uso abusivo de substâncias, de um quadro de ansiedade, de depressão, de transtorno de estresse pós-traumático. 

    E aí com esses relatos a gente resolveu que deveria abrir uma segunda linha de investigação ainda lá em Ribeirão Preto para testar os efeitos terapêuticos da ayahuasca em um ambiente mais controlado, dentro do hospital. 

    Neste caso, optamos por trabalhar com pacientes com depressão. Então a pesquisa científica foi para responder: qual é o papel antidepressivo da ayahuasca? E para resolver essa questão conduzimos estudos clínicos, sob a coordenação do psiquiatra Jaime Hallak.

    A ayahuasca funciona de fato como antidepressivo?
    Em nossos ensaios clínicos, demos uma dose de ayahuasca para pacientes com depressão resistente ao tratamento e avaliamos os efeitos antidepressivos que se seguiram àquela sessão com ayahuasca. Um dia depois. Dois dias depois. Sete, 14 e 28 dias depois. E o que a gente observou nesse primeiro estudo com 17 pacientes é que a ayahuasca tinha um efeito antidepressivo rápido. 

    Um dia depois os pacientes já apresentavam uma melhora dos sintomas que vinham apresentando antes da sessão com ayahuasca. 

    Lembrando que eram pacientes graves, que já haviam testado pelo menos duas a três medicações antidepressivas comercialmente disponíveis e não vinham respondendo a esses tratamentos. Esse trabalho foi publicado em 2016. Quando terminamos esse ensaio na USP de Ribeirão Preto, começamos outro ensaio já aqui em Natal, em 2009, no Instituto do Cérebro, da UFRN. Foi um  ensaio placebo-controlado randomizado, o que significa que metade dos pacientes bebeu ayahuasca, e metade dos pacientes bebeu placebo. Tivemos um total de 35 pacientes que foram recrutados para esse estudo, publicado em 2018

    Entre eles, há pacientes que já haviam feito mais de 15 sessões diferentes de eletroconvulsoterapia e pacientes já tomaram mais de 20 medicações distintas. 

    A gente está fazendo uma única intervenção, não um tratamento propriamente dito – os voluntários depois retornam para os tratamentos convencionais que a clínica pode oferecer. E naturalmente vários desses pacientes voltam a apresentar quadros mais graves e recorrentes de depressão. Então, parte desses pacientes devem continuar em outros estudos que a gente vai fazer. Mas vão passar por um novo processo de seleção. 

    Vídeo apresenta o ensaio clínico mais recente realizado por equipe do Instituto do Cérebro no Hospital Onofre Lopes, da Universidade Federal de Rio Grande do Norte

    Quais os efeitos que as pessoas com depressão profunda experimentaram com a ayahuasca e os remédios tradicionais? 
    Existe a teoria de que a depressão tem origem na redução da concentração de serotonina no cérebro. A princípio, o que boa parte dos antidepressivos disponíveis tentam fazer é aumentar a concentração desses neurotransmissores no cérebro dos pacientes. Há vários tipos de medicamentos antidepressivos, com mecanismos de ação distintos. Os mais conhecidos são os inibidores seletivos de recaptação de serotonina, que funcionam aumentando a disponibilidade de serotonina no cérebro. Por exemplo, a fluoxetina, que é um dos mais utilizados na prática clínica. 

    A ayahuasca e outros psicodélicos também atuam sobre receptores de serotonina. 

    O mecanismo de ação especificamente da ayahuasca é multifatorial. Percebemos que existe um aumento significativo de funções associadas à serotonina, mas a experiência subjetiva com a ayahuasca em si também parece ter um efeito terapêutico, semelhante ao de uma psicoterapia. 

    Vários indivíduos que participam dos nossos estudos dizem que se sentiram naquelas 4 horas da experiência como se tivessem feito 4 anos de terapia.

    Outros indivíduos dizem que não gostam da experiência com ayahuasca de jeito nenhum pelos mesmos motivos que não gostam de psicoterapia. Tem, portanto, um elemento terapêutico muito forte por trás da experiência. E, hoje, o laboratório trabalha com essas duas ideias em paralelo, compreendendo que os efeitos terapêuticos da ayahuasca vêm, de um lado, da modulação do sistema biológico de maneira mais significativa. 

    A gente encontrou na ayahuasca um papel antiinflamatório. Existe uma relação muito intensa entre inflamação e transtorno mental, particularmente a depressão. 

    Boa parte dos pacientes com depressão apresentam um quadro inflamatório generalizado no corpo. Se a inflamação é o que dá origem à depressão ou a depressão é o que dá origem à inflamação, não se sabe ainda. O que a gente sabe é que esses dois sistemas estão interligados em boa parte dos pacientes. Um outro sistema que parece estar relacionado aos efeitos terapêuticos da ayahuasca é o que a gente chama de neuroplasticidade. Está ficando cada vez mais claro que essas substâncias [psicodélicas], e a ayahuasca incluída, geram, aumentam e amplificam processos de neuroplasticidade. 

    O que significa que possibilitam que o cérebro forme novas conexões em comparação com as conexões que tinha formado antes da experiência com ayahuasca, ou antes das sucessivas experiências com ela. 

    Então, por um lado, está claro para nós que a ayahuasca e outras substâncias psicodélicas modulam vários sistemas biológicos que são importantes para manutenção da homeostase dos sistemas, como o inflamatório e o de neuroplasticidade. Por outro lado, também está claro que aspectos subjetivos que ocorrem durante os efeitos agudos da experiência com a substância parecem colaborar com o efeito terapêutico. Porque fazem com que a pessoa tenha acesso a informações, clarezas, insights que sem a substância não havia tido a oportunidade de criar. O que temos de conclusão dos estudos é essa ideia de que por um lado há um mecanismo biológico mais robusto e, por outro lado, um mecanismo mais sutil, do ponto de vista da terapia. 

    O que influencia nesses aspectos mais sutis durante a experiência com psicodélicos, mais especificamente ayahuasca? 
    É conhecida, entre as pessoas que têm um pouco mais de experiência com psicodélicos, a importância que existe de se ter um bom set e um bom setting, falando da forma como a ciência tem se referido a isso. Set como sendo as características do indivíduo naquele momento, e setting como sendo todo o entorno. 

    As expectativas e a intenção do indivíduo são muito importantes, servem de guia para as experiências. 

    O quarto onde a gente faz as experiências com ayahuasca no laboratório do Hospital Universitário Onofre Lopes, da UFRN, é mais aconchegante. Não tem cara de quarto de hospital típico, com maca, cheio de aparelhos. Ele parece um quarto de dormir mesmo, com mesa, sofá, poltrona. E estamos fazendo uma reforma do espaço para começar os próximos ensaios clínicos em abril. A ideia é que seja ainda mais aconchegante e agradável. Vamos pintar as paredes com cores quentes, colocar mais obras de arte, trocar o piso. A gente sempre toma muito cuidado com as músicas. 

    Temos duas playlists no Spotify que foram criadas por uma pessoa que colaborou muito com o nosso projeto, o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, e que trouxe várias músicas que são utilizadas na União do Vegetal. 

    E outras músicas que têm o mesmo tipo de característica. Uma playlist toda instrumental, com muita música andina e música clássica. E outra com letras em português, que carregam algum sentido que talvez seja bem percebido durante os efeitos da ayahuasca, com temáticas de natureza, de cura – tem Roberto Carlos também nesta na playlist, por exemplo. Temos uma equipe de suporte que acompanha as pessoas tanto antes da sessão com ayahuasca como durante e depois. A gente não orienta as experiências, a gente explica o que pode acontecer, mas a gente não interfere, nem tem uma condução psicoterapêutica das experiências. Simplesmente tem a atitude e objetivo de dar segurança e suporte para que eles tenham a experiência mais profunda e mais tranquila possível.

    Muitas pessoas reclamam sobre os efeitos colaterais, eles também acontecem no ambiente controlado do hospital?
    Mesma coisa: as pessoas ficaram nauseadas, vomitaram, tiveram sonhos, se incomodaram ou se deslumbraram muitas vezes com o que viram. Então os efeitos que a gente observou no laboratório foram muito semelhantes aos efeitos observados por aí nos rituais. 

    Quais as recomendações para quem decide participar de uma experiência com psicodélicos? 
    A gente pede para que a pessoa fique sem ingerir substâncias psicoativas por algum tempo. Geralmente uma semana sem café, álcool, tabaco, cannabis. Para os pacientes, a gente tem todo o esquema específico para desmamar as medicações que vão ter algum tipo de interferência com processos bioquímicos que são comuns da ayahuasca. Por exemplo, existe a possibilidade que as pessoas tenham síndrome serotoninérgica se elas tomam ayahuasca junto a antidepressivos. E a gente sempre pede para que a pessoa tenha algum tipo de intenção [como numa sessão de psicoterapia]

    Para qualquer pessoa que vai fazer uma primeira ou qualquer experiência com uma substância psicodélica, é importante ter uma atitude de entrega. Ela precisa confiar, precisa se sentir segura. 

    E isso é uma constante nas pessoas que vem fazer experiências com ayahuasca com a gente aqui no hospital. Porque a variável segurança está muito clara no nosso protocolo. Em outras palavras, se você vai fazer uma primeira experiência com ayahuasca no meio do mato com um xamã, e você não está muito segura naquela experiência, passa pela sua cabeça: se acontecer alguma coisa aqui para onde é que ele vai me levar? E isso passa pelas cabeças dos nossos voluntários, mas eles se dão conta que, se acontecer alguma coisa muito errada, uma instituição de saúde é o local para onde qualquer pessoa deveria lhes trazer. 

    O que pode dar muito errado numa experiência com ayahuasca, na floresta ou no hospital?
    A pessoa pode ter um surto [psicótico], pode ter uma crise de ansiedade, pode achar que não está num local seguro. O risco não é de saúde física propriamente dito. Essas substâncias do ponto de vista físico são muito seguras, elas não alteram o sistema autonômico: não alteram a respiração, nem o sistema cardiovascular de maneira mais significativa. Não levam à overdose. Então não são substâncias que oferecem um risco propriamente à vida do indivíduo. Mas tem pessoas que não deveriam utilizar esse tipo de substância, particularmente indivíduos que têm risco de apresentar um surto psicótico. 

    Os grupos de risco que podem apresentar surtos psicóticos são pessoas que têm transtorno afetivo bipolar e pessoas com esquizofrenia, ou com histórico de familiares com essas características. 

    Um dos processos que fazemos de maneira muito delicada e rigorosa é a seleção dos voluntários para nossos ensaios clínicos, garantindo que são indivíduos que a princípio não apresentam risco maior de desenvolver um surto psicótico durante os eventos agudos daquela substância. E efetivamente, com quase 100 indivíduos que já passaram por nós, a gente nunca teve nenhum problema mais significativo. Dentro de um ambiente hospitalar esse risco é minimizado pelos critérios de inclusão e exclusão da pesquisa. Mas é difícil eu dizer que não tem anamnese nos centros xamânicos – o que eu posso dizer é que nas igrejas ligadas ao Santo Daime têm e que eu conheço algumas comunidades neo-ayahuasqueiras que são extremamente responsáveis nas suas sessões.

    Há outras contraindicações? Grávidas e crianças podem tomar? 
    Mulheres grávidas, por exemplo, são um ponto em aberto, não tem dados na literatura dizendo que mulheres grávidas têm um risco. O que a gente sabe é que nas comunidades ayahuasqueiras as mulheres grávidas e lactantes bebem ayahuasca. Inclusive às crianças é permitido que bebam quantidades pequenas. As principais igrejas, Santo Daime e União do Vegetal, são comunidades que existem há muito tempo. 

    A primeira sessão com ayahuasca no Santo Daime foi em 1930. Então é uma comunidade que tem quase 100 anos de experiência no uso da ayahuasca. 

    Se a gente considerar, por exemplo, que eles bebem ayahuasca a cada 15 dias – e que só a União do Vegetal tem mais de 20 mil afiliados em todo o mundo –, isso significa que não é uma substância que traz um risco mais iminente, porque se não a gente ficaria sabendo a cada 15 dias de alguma pessoa que teve uma complicação. São raríssimas as vezes que se sabe de algum caso significativo associado a uma sessão com ayahuasca.

    Microdoses de psicodélicos têm se tornado objeto de experimentação. Há florais de ayahuasca para microdoses diárias. Existe alguma evidência científica? 
    A evidência que há hoje em dia não é robusta. Não temos nenhum dado significativo na ciência mostrando que microdose traz algum benefício. 

    Os estudos mais recentes compararam microdose ao placebo. Então não está claro ainda sobre os benefícios, se são realmente da microdose da substância ou se é fruto do placebo. 

    Eu diria que a microdose é uma ciência mais complicada de ser feita. E não tem nada hoje na ciência que sugira de maneira significativa que existe o benefício por trás da ayahuasca usada em microdose.

    Além da ayahuasca, o senhor estuda outras substâncias?
    Pela nossa experiência de conduzir ensaios clínicos e pesquisas científicas com ayahuasca, a gente foi convidado para colaborar em estudos com LSD, feitos na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] sob a coordenação do professor Luís Fernando Tófoli. Assim como a ayahuasca, o DMT, a mescalina, e a psilocibina, o LSD é um enteógeno ou psicodélico, substâncias capazes de alterar o estado de consciência. 

    Estamos iniciando agora uma série de estudos com a N,N-dimetiltriptamina, ou simplesmente DMT, como ela é mais conhecida, que é a substância psicoativa da ayahuasca, só que isolada. 

    Ao ingerir essa substância, como qualquer outra triptamina, como é o caso da serotonina e da dopamina, uma enzima presente no nosso estômago que se chama monoamina oxidase a destrói. Isso significa que, se você ingerir o DMT, ela vai ser degradada no estômago e você não vai sentir nenhum efeito. A ayahuasca é uma combinação entre duas plantas.

    Uma delas, a Psychotria viridis ou chacrona, é rica em DMT, essa substância que é a mais robustamente psicoativa e é a responsável por boa parte dos fenômenos ou efeitos psicodélicos da ayahuasca. 

    E a outra planta é um cipó – o jagube, cuja casca é rica em inibidores da monoamina oxidase, uma outra substância que inibe essa enzima que a gente tem no nosso estômago. O que significa dizer que, quando eu misturo essas duas substâncias, uma das plantas protege o DMT, e assim ele entra na circulação e aí exerce os efeitos da ayahuasca no sistema nervoso central. Para utilizar então a N,N-dimetiltriptamina de forma isolada, precisamos de uma outra via de administração que não oral, como intramuscular, endovenoso ou sublingual. Esse é o objetivo dos próximos trabalhos que vamos começar no laboratório.

    Por que vocês vão testar o DMT isolado, qual é a hipótese?
    Do ponto de vista científico é interessante associar os efeitos a uma única substância específica, e não uma composição. No caso da ayahuasca, os inibidores de monoamina oxidase, embora não tenham um efeito psicoativo, têm um efeito no sistema nervoso central, que é mudar a concentração de vários outros neurotransmissores, como a dopamina e a serotonina. Então queremos entender se o DMT isolado tem efeitos antidepressivos assim como vimos com a ayahuasca. 

    O objetivo é criar um novo medicamento antidepressivo? 
    Quem sabe? É possível. Não é da perspectiva do laboratório criar um medicamento com ayahuasca. Mas com o DMT isolado talvez.

    Como tratamentos antidepressivos, o DMT e a ayahuasca atuariam somente nos sintomas, ou já poderíamos falar sobre cura para a depressão? 
    A gente ainda está longe para responder essa pergunta. Porque o que a gente está fazendo não pode ser considerado ainda um tratamento. Estamos fazendo uma intervenção. A ayahuasca pode fazer parte, talvez, de um tratamento. E ainda assim se precisa avançar para ver como isso seria feito, como a ayahuasca, ou outra substância psicodélica, poderia entrar como parte de um tratamento.

    Este medicamento serviria somente para tratar a depressão? 
    Tem vários trabalhos em andamento em grupos de pesquisas que estudam os efeitos de substâncias psicodélicas sobre várias condições clínicas distintas além da depressão, como estresse pós-traumático, ansiedade, uso abusivo de substâncias, como álcool e tabaco. E, até agora, há outras condições que têm menos estudos sobre, como Alzheimer, AVC, transtornos alimentares, dor crônica. 

    Na sua opinião, qual a relevância do Brasil no que vem sendo chamado de renascimento psicodélico global?
    Acho que é uma área da ciência na qual a gente está muito bem representado. Além do nosso grupo, tem várias outras pessoas que têm contribuído já há bastante tempo com pesquisas sobre esse tipo de substâncias. Citando, por exemplo, os outros grupos de pesquisa do professor Luís Fernando Tófoli, da Unicamp; o professor Stevens Rehen, da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]; o professor Sidarta Ribeiro, aqui também da UFRN; a professora Linda Caldas, da UNB [Universidade de Brasília]; o professor Dartiu Xavier da Silveira, da Unifesp [Universidade Federal de São Paulo]

    O que acaba colocando o Brasil muito bem posicionado no ranking de pesquisas sobre psicodélicos. Se não me engano, o Brasil ocupa a terceira posição nessas pesquisas, perdendo só para Estados Unidos e Inglaterra.

    Estamos à frente da Austrália, Holanda, França. Então é uma área que, realmente, o Brasil está muito bem representado – as pesquisas hoje feitas aqui no Brasil e por brasileiros têm uma repercussão mundial bastante significativa. Só para você ter uma ideia, esse ensaio que foi publicado em 2018 ainda é hoje o único ensaio no mundo a testar uma substância psicodélica dentro de um desenho placebo-controlado, randomizado, em depressão resistente ao tratamento. Acho que isso representa esse estado de vanguarda que a gente tem no Brasil hoje com esse tipo de pesquisa.

    Como está o posicionamento das farmacêuticas com relação aos estudos com os psicodélicos?
    O investimento nessa área tem crescido significativamente nos últimos anos. Tem várias empresas surgindo no mundo todo com a perspectiva de criar fármacos a partir de substâncias psicodélicas. 

    Existe aparentemente uma migração de fundos do mercado da cannabis para o mercado dos psicodélicos. 

    Então, tem um movimento mundial bastante relevante hoje em dia no que diz respeito a essa perspectiva econômica e de laboratórios de criar medicamentos com base nessas substâncias.

    Farmacêuticas já procuraram vocês com uma intenção de investimento?
    Várias empresas. A gente hoje está trabalhando em parceria com uma dessas, que se chama Biomind Labs [com sede no Canadá]. Não posso falar quanto investiram, mas posso dizer que é um estudo que vem sendo feito a partir de um acordo de colaboração firmado entre empresa e universidade. É uma parceria como qualquer outra. 

    Como o senhor vê o futuro de tratamentos com DMT, ayahuasca e demais psicodélicos?
    Por esses 16 anos que a gente vem trabalhando com ayahuasca, eu diria que é uma substância, como outros psicodélicos, que para mim está claro que têm um potencial terapêutico praticamente inexplorado, em várias condições humanas. Os psicodélicos são uma chance que a psiquiatria e a psicologia têm de tratamentos mais efetivos para um grupo de pessoas que atualmente não têm um tratamento que traga benefícios significativos. Então eu vejo uma oportunidade no futuro. 

    A gente parece ter as condições urgentes agora com depressão aumentando no Brasil e no mundo todo por causa da pandemia. Qual é o ritmo que essas pesquisas devem seguir? 
    O ritmo é o ritmo da ciência. A ciência não anda a passos largos, mas anda a passos firmes. Eu diria que essa é a solução ou a estratégia que a gente realmente deve adotar: seguir todos os passos da ciência com a clareza de medir o risco e o benefício associado a qualquer tipo de tratamento que se propõe a seres humanos. E a gente está caminhando. 

    Existe uma pressão muito significativa da própria sociedade, pela ausência de tratamentos eficientes nessa área. 

    E talvez isso faça com que mais investimentos e um maior número de pessoas interessadas em trabalhar com psicodélicos sejam soluções que caminhem mais rápido do que outras soluções que apareceram até agora. Está claro que algumas substâncias psicodélicas vão estar aprovadas no mercado nos próximos dois a três anos e isso certamente vai expandir as possibilidades de pesquisa com implementação dentro do mercado.  

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