• “No Brasil, temos a cultura de não procurar a atenção primária à saúde”, alerta especialista em medicina de família

    Monica Verdier, médica de família
    Monica Verdier, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, é médica de família e ex-preceptora na residência de Medicina de Família e Comunidade da FMUSP. (Foto: Divulgação)
    Jose Renato Junior | 2 set 2022

    Na definição clássica, a medicina de família e comunidade é a especialidade clínica que se ocupa da manutenção e resolução dos problemas de saúde frequentes nos indivíduos, famílias ou comunidades, independentemente da idade, do sexo, do órgão ou sistema afetado. 

    Não é rara a relação entre essa disciplina da medicina e os postos de saúde da rede pública. Mas atuar nesta área vai muito além disso. “Sabe quando falam que é um médico que sabe um pouco de tudo? Na verdade, o que sabemos é um ‘tantão’ de tudo”, brinca Monica Verdier, médica de família com graduação e residência pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), atua no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.

    Por trás da brincadeira, a realidade. No ano de 2020, o Brasil atingiu a marca de mais de 500 mil médicos registrados, sendo apenas 7.149 médicos e médicas de família e comunidade distribuídos em todo o território nacional. O dado faz parte de senso Demografia Médica 2020, estudo realizado pelo Conselho Federal de Medicina e pela FMUSP.

    “A atenção primária à saúde (APS) é onde deveríamos ter a maior parte dos médicos no Brasil. A medicina de família adentrou pouco na medicina suplementar brasileira, por isso muitos ainda acham que apenas postos de saúde do SUS tem essa especialidade”, explica Monica. 

    De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a atenção primária à saúde, que oferta atendimento abrangente, acessível e baseado na comunidade, pode atender de 80% a 90% das necessidades de saúde de um indivíduo ao longo de sua vida. 

    E esse atendimento inclui serviços que vão desde a promoção da saúde e prevenção até o controle de doenças crônicas e cuidados paliativos. Portanto, a APS cuida das pessoas e não apenas trata doenças ou condições específicas.

    A OMS também já elencou a falta de acesso à atenção primária como uma das dez principais ameaças à saúde global.

    E é exatamente neste contexto de vínculo direto com o paciente que a oportunidade de oferecer escuta ativa e cuidar de forma completa das pessoas encanta Monica na prática do dia a dia.

    “Na medicina de família, prezamos muito a relação médico-paciente. Criamos uma verdadeira comunicação na consulta e isso se reflete desde a maneira com que você monta sua sala de atendimento, no jeito que cumprimenta ou dá tchau para o paciente. O vínculo é o que faz funcionar essa relação, pois, quando ele se forma, cuidamos da pessoa como um todo”, diz a especialista. 

    Outro ponto importante destacado por Monica é que a medicina de família e comunidade atualmente tem um forte respaldo na medicina baseada em evidências, o que ajuda a derrubar preconceitos relacionados a médicos generalistas. 

    Nesta abordagem, a proposta é aumentar a eficiência e a qualidade dos serviços de saúde prestados à população, além de diminuir os custos operacionais dos processos de prevenção, tratamento e reabilitação. 

    “No Brasil, temos uma cultura forte de não procurar a atenção primária. Geralmente, as pessoas querem pular direto para o especialista. O desafio é mostrar que um olhar para o todo às vezes monta o quebra-cabeça melhor. O ideal é que os dois profissionais trabalhem juntos e, assim, proporcionem maiores benefícios ao paciente”, diz. 

    Para Monica, a especialidade ainda é vista até mesmo por seus pares médicos com certa resistência. Seja pelo olhar integral aos indivíduos, pela proximidade com os pacientes ou por não ser uma área com glamour, quem opta por este caminho nada contra a corrente. 

    “Médico generalista no Brasil é quase um termo pejorativo Temos uma construção histórica que é difícil romper. A figura do médico com jaleco, estetoscópio no pescoço e ar de superioridade é uma tradição. Na faculdade cheguei a levar bronca por dialogar com paciente e ouvi em aula que uma boa estratégia era colocar a cadeira elevada diante do paciente, para que ele entendesse o canal de comunicação”, conta a médica.

    E essa frieza foi um dos principais pontos que fizeram Monica buscar um caminho oposto. “Eu converso de igual para igual com os pacientes e acredito que essa relação deve ser mais horizontal”, declara. 

    “Em um ambiente de consultório, é importante ouvir também a vontade do paciente e às vezes não é o que queremos ouvir, mas faz parte.” 

    Monica completa dizendo que “a ideia é resolver problemas relacionados com o processo saúde-enfermidade, de forma integral e contínua, apoiando o protagonismo de quem está sendo tratado.” 

    Olhar integral de verdade

    Se o olhar integral ao paciente está em alta quando se fala em medicina, é na área da família que ele acontece de forma genuína. 

    “Abordamos os problemas de saúde de maneira integral realmente, pois unimos as esferas biológica, psicológica, social e espiritual dos pacientes. A escuta ativa é um termo muito usado por nós, pois  é o ato de deixar a informação aparecer, selecionar o que é relevante. Permitir que o paciente contextualize a queixa é importante para nossa atuação”, detalha.

    Outro ponto positivo da especialidade é que, fora do ambiente hospitalar, um médico da família pode focar em adultos, na saúde da mulher e de crianças. Até mesmo o enfoque dos cuidados com a saúde mental está no escopo destes profissionais. 

    “Este é um treinamento importante, aliás. Muitas vezes, em uma consulta de rotina, ao perguntarmos se está tudo bem, descobrimos que a pessoa está em burnout, sobrecarregada ou precisando de algum apoio emocional. Nossa abordagem pode fazer a diferença, pois é um contexto que impacta a saúde física também”, esclarece Monica. 

    Confira Também: