• “Os bancos de dados genômicos não representam a população mundial”, diz fundadora da Gen-t

    Lygia da Veiga Pereira, fundadora e CEO da Gen-t
    Lygia da Veiga Pereira é fundadora e CEO da Gen-t. (Foto: Divulgação)
    Jose Renato Junior | 22 mar 2023

    Risco de morte prematura pode ser menor para quem toma café. Habitantes de áreas poluídas sofrem mais de doenças crônicas. Prevalência de cromossomo sexual extra é maior do que se pensava e aumenta probabilidade de homens desenvolverem diabetes tipo 2, obstruções arteriais e problemas pulmonares.

    As três constatações acima têm algo em comum: foram elaboradas a partir de dados do UK Biobank. Com informações sobre 500 mil britânicos, o banco de dados genético do Reino Unido é capaz de relacionar ambiente, saúde e genética e abrir portas para aproximar a população local da medicina de precisão – que usa dados do genoma do paciente para manejar melhor sua saúde.

    Do outro lado do Atlântico, o Brasil ainda está longe de vivenciar realidade semelhante: com uma população consideravelmente maior (214,3 milhões versus 67,33 milhões), não sequenciou nem uma dezena de milhar de genomas, subaproveitando uma de suas maiores vantagens, a diversidade.

    Sobre este cenário, a pesquisadora Lygia da Veiga Pereira, chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE) da Universidade de São Paulo (USP) e uma das principais especialistas em genética do país, comenta:

    “Para identificar genes e variações envolvidas no risco de doenças, é preciso conhecer o genoma de centenas de milhares de pessoas, mas a comunidade científica se deu conta de que 89% dos dados de genomas humanos disponíveis são de ancestralidade europeia e apenas 1% de latino-americana.”

    No ano passado, Pereira se aventurou fora da academia pela primeira vez na carreira e fundou a startup Gen-t, da qual também é CEO. A missão da empresa é alavancar a diversidade genética capaz de acelerar avanços médicos e incluir a população brasileira na era da medicina de precisão.

    “Nós somos o resultado de 500 anos de mistura de três populações originais – indígenas, europeus e africanos–, então, tivemos, sim, 500 anos de extermínio, mas também de miscigenação, que deu origem à nossa população. Então, ao sequenciar os genomas dos brasileiros, encontramos novidades e variações que ainda não estão descritas nos bancos de dados”, declara Pereira.

    O plano da Gen-t é ambicioso: montar um banco de dados com informações e amostras genéticas e de saúde de 200 mil voluntários até 2026 e, a partir dele, detectar oportunidades para inovar. Para colocá-lo em prática, já fechou acordos de co-desenvolvimento e acesso à plataforma com a indústria farmacêutica e levantou R$ 10 milhões em uma rodada de financiamento pré-seed, que contou com a participação de investidores de peso como:

    – Eduardo Mufarej: fundador da aceleradora de talentos Galena, da consultoria GK Ventures e da organização social RenovaBR;
    – Armínio Fraga: fundador da Gávea Investimentos e ex-presidente do Banco Central;
    – Daniel Gold, CEO do grupo de gestão de investimentos QVT Financial LP;
    – Tomas Pereira, sócio da Editora Sextante;
    – Roivant Sciences: empresa de biotecnologia.

    Acompanhe, a seguir, a conversa entre Lygia da Veiga Pereira e FUTURE HEALTH sobre diversidade genética, medicina de precisão e a posição do Brasil nesse cenário:

    FUTURE HEALTH: Como a pesquisa genômica mundial avançou desde 2003, quando aconteceu o primeiro sequenciamento, até agora, com os avanços da medicina de precisão?

    LYGIA DA VEIGA PEREIRA: Nós todos somos o produto de um genoma humano, mas nosso genoma não é idêntico, caso contrário seríamos clones. Essa diferença, de apenas 0,1% – ou seja, nós somos 99,9% idênticos do ponto de vista do nosso DNA – é responsável por nossas características individuais, não só de aparência como também de saúde. Depois de sequenciar 92% do genoma humano, em 2003, a comunidade científica passou a se interessar cada vez mais justamente pelo que faz cada um de nós sermos diferentes.

    Somado a isso, o avanço da tecnologia tornou possível o sequenciamento genômico de um número cada vez maior de indivíduos. 

    No primeiro sequenciamento da história, o custo foi de US$ 3 bilhões e sua conclusão levou 15 anos. Hoje, por US$ 400, um genoma fica pronto em oito horas.

    Passamos, então, a ter a capacidade de tentar responder perguntas sobre que variações genéticas são responsáveis por nossas características e predisposições a doenças. Só que a genética da hipertensão, do Alzheimer, do Parkinson é complexa, e nossa predisposição é composta de provavelmente centenas de pequenas variações em diferentes genes no nosso genoma que, somadas, vão gerar a equação do risco de cada indivíduo desenvolver esses problemas. 

    Ainda existe o fator ambiental – prática de exercícios, tabagismo etc. Por causa dessa complexidade para identificar genes e variações envolvidas no risco de doenças, com peso estatístico, é preciso conhecer o genoma de centenas de milhares de pessoas. Por isso, os países passaram a sequenciar suas populações. A Islândia foi pioneira, seguida da Finlândia. O Reino Unido também se destaca: o UK Biobank já tem 500 mil genomas humanos.

    Porém, a partir de 2016, começaram a ser publicados diversos artigos mostrando um problema fundamental: a falta de diversidade dos estudos de genomas humanos no mundo, justamente porque os países que mais realizam sequenciamento são os desenvolvidos. 

    A comunidade científica se deu conta de que 89% dos dados de genomas humanos disponíveis eram de ancestralidade europeia, cerca de 18% de asiática, 3% de africana e só 1% de latino-americana. 

    Isso significa que a maioria dos estudos que utilizam esses dados são feitos em populações brancas.

    FH: Qual é o principal problema dessa falta de diversidade genômica?

    LVP: Pense em machine learning. Quando o seu “set de treinamento” tem um perfil restrito, o aprendizado da máquina também fica restrito. Logo, se estamos aprendendo sobre a genética de doenças estudando apenas genomas de pessoas brancas, quando quisermos aplicar o conhecimento para tentar prever o risco de uma pessoa de outra ancestralidade desenvolver essa mesma doença, a precisão não será a mesma. 

    Por isso, a comunidade científica mundial se deu conta de que estava desenvolvendo uma medicina de precisão precisa apenas para populações brancas. 

    Esse tipo de desigualdade não representa a população mundial e é um absurdo. 

    O segundo problema é a perda de oportunidades de fazer novos achados sobre genética e biologia humana que estão escondidos em genomas de outras ancestralidades. 

    Já existem vários artigos científicos mostrando que quando se estuda a genética de alguma doença e pessoas de variadas ancestralidades são incluídas, aumenta-se a probabilidade de se descobrir genes novos envolvidos naquela doença. E cada novidade como essa é uma possibilidade de gerar inovação como, por exemplo, achar um alvo para o desenvolvimento de uma nova terapia. 

    Então, do ponto de vista de inovação, ao deixar de estudar populações não-europeias, perdemos oportunidades de fazer achados que podem gerar inovação na indústria de farma e biotecnologia. 

    Hoje, a oncologia é a área da medicina mais avançada em medicina de precisão, mas o grande esforço da comunidade científica internacional está em ampliar isso para as outras especialidades, como doenças neurológicas, metabólicas, psiquiátricas… Hoje em dia, um antidepressivo é definido por tentativa e erro, apesar de sabermos que existe um componente genético importante. É possível que, em breve, eu possa fazer um teste genético para saber qual é o medicamento mais indicado. E a diversidade genética contribui para isso.

    FH: Como está o Brasil no mapa genômico?

    LVP: No Brasil, seguimos acompanhando os avanços, mas com uma dor de cotovelo danada porque esses projetos são caros e requerem organização da comunidade científica e um apoio do governo que ainda não temos. Mas quando nós, da comunidade científica, passamos a acompanhar a questão da falta de diversidade, falamos: “Se falta diversidade, precisamos botar um projeto brasileiro em pé.” 

    Em 2019, ajudei a lançar o projeto DNA do Brasil, primeiro financiado pela rede de saúde integrada Dasa e pela Google Cloud como doação e depois encampado pelo Ministério da Saúde, que se propôs a sequenciar o genoma de brasileiros para entender as variações genéticas em nossa população. Confirmamos o valor dos genomas brasileiros em termos de novidades. No fim de 2022, chegamos a 4 mil genomas, e o artigo será publicado em breve.

    FH: E o que é que o brasileiro tem?

    LVP: Nós somos o resultado de 500 anos de mistura de três populações originais. Primeiro os indígenas, os povos originários. Depois os portugueses e, mais tarde, outros europeus. E eles trouxeram mais da metade dos africanos que saíram do continente africano escravizados – foram pessoas de diferentes regiões da África que não se misturam, não se encontram lá.

    Então, tivemos, sim, 500 anos de extermínio, mas também de miscigenação, que deu origem à nossa população. Cada um de nós tem o seu genoma composto por diferentes frações desse genoma de ancestralidade europeia, africana e indígena. Então, ao sequenciar os genomas dos brasileiros, recuperamos grandes frações de genomas africanos, com misturas de genomas africanos que não existem na África (porque na África essas pessoas estão distantes, mas se encontraram aqui). 

    Recuperamos grandes frações de genomas indígenas, de povos que não estão mais aqui, mas cujos fragmentos de genomas sobrevivem no brasileiro atual. Nesses genomas, principalmente, encontramos novidades e variações que ainda não estão descritas nos bancos de dados. 

    Confirmamos que, de fato, quando sequenciamos genomas da nossa população, revelamos fatos que não conhecíamos sobre o genoma humano. Isso ajuda a incluir a nossa população na medicina de precisão e abre oportunidades para fazermos descobertas sobre alvos terapêuticos e, a partir deles, desenvolver novos medicamentos.

    FH: É esse o objetivo da Gen-t e do Projeto Gen-t do Brasil?

    LVP: Sim, empresa e projeto nasceram da consciência de que a população brasileira estava ficando de fora, excluída, da medicina de precisão. Gen-t é a junção de gene e tecnologia, mas é acima de tudo sobre a gente, sobre a nossa gente. 

    Nossa missão é incluir a população brasileira em medicina de precisão e poder desenvolver inovação dentro da área de farma e biotecnologia a partir da nossa diversidade genética, das novidades que vamos encontrar nos genomas brasileiros. Só que, para isso, é preciso conhecer vários genomas brasileiros, então demos um passo atrás para construir essa estrutura de pesquisa, o banco de dados. 

    Por meio do Projeto Gen-t do Brasil, convidamos voluntários a compartilhar seu histórico de saúde e seu DNA – que eventualmente será sequenciado – com nosso biobanco. Realizamos um checkup completo para estabelecer uma fotografia do estado de saúde dessas pessoas, realizamos um extenso questionário e as acompanharemos uma vez por ano. Tudo alimentará nossa plataforma para podermos, então, encontrar oportunidades de inovação.

    FH: Como a atuação da Gen-t se diferencia de programas como o Genomas Brasil, do governo federal?

    LVP: Ela complementa. Isso acontece em vários países. Há programas governamentais e empresas que surgem para atuar na área e complementar. Eu, que nunca saí da universidade desde que prestei vestibular, em dezembro de 1983 – entrei na PUC-Rio, fiz graduação, mestrado, doutorado, lecionei –, vi essa oportunidade e fiquei interessada. 

    O que queremos mesmo é fazer inovação. Por isso, estaremos o tempo inteiro atentos a oportunidades em diversas áreas da saúde. No banco de dados, posso descobrir, por exemplo, pessoas com uma alteração que faz com que tenham o nível de glicose no sangue mais baixo. Opa! O que é isso? Vamos estar atentos às oportunidades, mas, ao mesmo tempo, ninguém esgota tudo o que pode ser feito com esses dados. 

    Então, também vamos usar esses dados para fazer parcerias com a indústria, seja em co-desenvolvimento ou apenas dando acesso para que eles façam a aceleração. Também queremos desenvolver um modelo comercial para disponibilizar a plataforma para a academia porque quanto mais gente estudar os genomas brasileiros, melhor para a nossa população.

    FH: Qual será o tamanho do banco de dados da Gen-t e quando os trabalhos de investigação terão início?

    LVP: Temos a meta de recrutar 200 mil voluntários em quatro anos, com 25 mil pessoas até o final do ano que vem. Este mês já começamos já a fazer certas análises de DNA – não o sequenciamento completo, mas o que chamamos de genotipagem, que é uma análise que fala da ancestralidade. 

    Vamos poder mostrar que estamos capturando frações grandes de ancestralidades africanas e indígenas. Porém, para construir e financiar essa infraestrutura, já realizamos acordos com a indústria para ajudar a acelerar e resolver perguntas sobre seus próprios desenvolvimentos, usando dados da nossa diversidade. Essa foi a forma de começarmos a criar uma renda para financiar a construção da plataforma.

    FH: Além do desenvolvimento de tratamentos e medicamentos mais precisos, como a medicina de precisão pode melhorar o sistema de saúde nacional?

    LVP: Vou dar um exemplo relacionado ao câncer de mama que já está sendo incorporado ao National Health Service (NHS), que é o serviço nacional de saúde do Reino Unido. Naturalmente, estamos falando de um país mais organizado e com uma população menor. 

    O SUS tem um desafio do tamanho da nossa população. Mas, sabemos que a partir dos 40 anos a probabilidade de uma mulher ter câncer de mama aumenta e, por isso, é preconizado para a população realizar mamografia uma vez por ano para identificar a doença mais cedo. 

    No entanto, estamos tratando todas as mulheres de forma igual e sabemos que haverá uma fração pequena com uma genética que dá predisposição maior – elas deveriam começar com a mamografia aos 20 anos. Por outro lado, há um número de mulheres sem nenhuma predisposição que poderia fazer o exame a partir dos 50, 60 anos. 

    Veja a economia que isso geraria para o sistema de saúde. Já está demonstrado, por diversos modelos, o impacto da medicina de precisão no manejo da saúde de populações dentro de sistemas de saúde. São vantagens para o indivíduo e para o sistema.

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