• “Como até 90% dos casos de autismo são genéticos, muitos pais descobrem que são neuroatípicos após diagnóstico do filho”

    A médica Rachel Monteiro Lorencini
    Jose Renato Junior | 5 jan 2022

    Rachel Monteiro Lorencini é, ao primeiro contato, uma médica que se define como generalista. Por ideal próprio, ela rejeita títulos. 

    Segundo suas convicções, catalogar médicos em suas especialidades pode atrapalhar, “porque as pessoas ficam procurando um profissional com base em seus títulos e acabam perdendo a oportunidade de passar com profissionais bons”, afirma.

    Mas não pense que, por causa de seus princípios, Rachel não busque conhecimento. Muito pelo contrário: hoje ela é um nome importante quando o tema são os neuroatípicos. 

    Atualmente, ela cursa duas pós-graduações diferentes. Uma é em psiquiatria e saúde mental no CBI of Miami, com foco em neurodiversidade, TEA/TDAH/DI (sigla para Transtorno do Espectro Autista/Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade/Deficiência Intelectual). A segunda pós é em psiquiatria e saúde mental da infância e adolescência na mesma instituição.

    O que a atraiu na área foi justamente a sua jornada de autoconhecimento: ao observar sinais neuroatípicos em seu próprio filho, identificou-os na sequência em seu marido e, por fim, em si mesmo. 

    Rachel, que hoje oferece atendimento para pessoas neurodiversas, conta um pouco mais de sua história na conversa a seguir.

    Conte um pouco da sua trajetória até chegar na medicina?
    Sempre fui uma pessoa muito “boazinha” – era vista assim por todos. E brincava com o termo “não tenho cara de apuros” que criei, porque nunca demonstrava o que eu sentia. Isso me atrapalhava, porque por mais que eu me sentisse triste, tinha dificuldade de falar sobre isso. 

    Muitas vezes, ia em profissionais e tinha a impressão de que eu estava sendo clara, mas a pessoa não estava me ouvindo. 

    Às vezes, tinha ideações suicidas e pensava que, se eu me matasse, as pessoas iam ficar bem chocadas, achando que foi “do nada”, porque ninguém percebia. Quando veio a fase de universidades, comecei a cursar engenharia química na Unicamp, mas logo abandonei, não consegui fazer nenhum período. 

    Só depois decidi fazer medicina, que não foi uma vontade desde sempre como é pra maioria das pessoas. 

    Na época, fui influenciada por uma pessoa que eu achava muito legal e admirava. Hoje vejo que isso tem a ver com o meu autismo – que só fui descobrir muito depois. A gente observa muito e acaba absorvendo esses exemplos de pessoas. Também era muito inteligente, então sempre houve uma carga alta de expectativa sobre mim, por causa desse desempenho acadêmico acima da média. Eu achava que teria que seguir alguma profissão clássica: engenharia, direito ou medicina.  

    E na faculdade, a sensação de deslocamento melhorou?
    A faculdade também foi muito difícil pra mim, tão difícil que durante muitos anos eu experimentava um mal-estar físico mesmo só de lembrar da faculdade – o que muitas pessoas descreveriam como uma crise de pânico. Gostava muito de estudar, mas sempre queria estar em casa. Então todas as vezes que eu podia voltar pro meu lar, eu voltava. Não fiz amigos na faculdade, pessoas com quem interagi e levei pra vida: não tenho contato com ninguém, era uma dificuldade muito grande isso pra mim também. No pós, todo mundo foi fazer residência e eu não imaginava fazer isso porque só de pensar em voltar para um ambiente semelhante ao da faculdade já me gerava muito desespero. 

    Como foram seus primeiros passos enquanto médica formada?
    Fui primeiro trabalhar com saúde da família, sempre gostei muito de atender bem, de fazer exame físico e de estudar. Em relação à minha trajetória, essas questões nunca foram um problema, e até em relação à equipe, ou de entender e diagnosticar o paciente: eu conseguia me relacionar bem se fosse nesse contexto. Agora, fora desse tipo de contexto, pra mim era muito mais difícil.

    Para fazer um amigo no trabalho, por exemplo, eu demorava mais. 

    As pessoas sempre me tinham como alguém que trabalhava muito. Se eu atendesse um paciente mais rápido, compensava atendendo o outro paciente mais devagar. Nunca ia tomar um café ou descansar, e só me aproximava para conversar se fosse pra falar de paciente. Isso me acompanhou a vida inteira. 

    Como e quando você começou a pensar que podia ser autismo? 
    Eu e meu marido tínhamos muito problema de relacionamento. A gente não conversava muito – até hoje é assim, a gente faz coisas juntos, assiste um filme, joga um jogo, mas não falamos muito. Um dia, fui buscar nosso filho na escola porque ele teve uma crise de choro muito severa, estava inconsolável. E o porquê: ele não tinha conseguido terminar uma atividade a tempo. 

    Não foi imediato o meu pensamento sobre autismo, até porque eu sempre tive um olhar de que o autista é somente aquele que tem algum atraso de desenvolvimento ou de fala, um erro clássico. 

    E nosso filho nunca teve isso, as escolas não tinham demanda em relação a ele, nunca pediram para avaliar ou falaram qualquer coisa do relacionamento. Ele teve um desenvolvimento até que típico para quem olha de fora. Mas hoje, claro, eu consigo ver com muita clareza alguns sinais. Nosso filho estava com mais sinais de rigidez. 

    O gatilho pra mim foi quando ele escolhia o formato da pipoca que ele ia comer. 

    E aí foi quando comecei a investigar. Deu um estalo na hora que comecei a pesquisar mais sobre o assunto. Eu pensei “meu marido é autista”. Apesar de nunca ter sido diagnosticado, ele tinha várias características clássicas: teve atraso de fala na infância, passou com fonoaudióloga por muitos anos, era muito passivo, uma autoestima muito baixa, nunca se defende – e eu achava tudo isso bem estranho. Daí quando o meu marido conseguiu o diagnóstico, a gente passou a observar mais o nosso filho. 

    E em você?
    Por causa deles, passei a focar mais na área de neurodiversidade. Comecei a ler livros científicos, jornalísticos, a assistir a séries e filmes. Foi quando assisti o filme da Mary Temple Grandin [o filme se chama “Temple Grandin”], que é uma autista famosa e foi diagnosticada na infância. Nele, tem algumas cenas em que ela mostra coisas que eram óbvias para ela, e as pessoas ao redor não achavam que eram. 

    Eu tinha uma dúvida muito grande de por que não conseguia me comunicar mesmo tendo um vocabulário bom, e achava que era a outra pessoa que não me escutava. 

    Mas, por algum motivo, eu escolho a palavra errada, que não era a esperada. Coordenar a expressão facial com o conteúdo do que eu estava falando era um desafio. Se chego e falo que eu estou deprimida, mas não faço cara de triste, aquilo que falei não vai ter o mesmo impacto. Foi vendo aquele filme que eu percebi pela primeira vez que eu poderia ser autista. E aí, quando fomos fazer a investigação do nosso filho, quanto mais a gente investigava, mais encontrava semelhanças na gente.

    O que pode ser sinal de autismo que poucos percebem?
    O autista geralmente tem muita dificuldade de relatar o que sente. Ele só sabe que é diferente, e para muitos médicos isso pode parecer muito abstrato, mas é o que a pessoa consegue relatar. Há muitos adultos não diagnosticados: existe uma pesquisa que diz que mais de 90% dos autistas não sabem que são. 

    Muitas vezes, um adulto que não foi diagnosticado possui algo para compensar. 

    Geralmente é uma alta habilidade em algo sobre qual nada foi feito a respeito – e aí ele não desenvolveu aquilo e nem foi diagnosticado. Comecei a identificar e aplicar isso na minha prática. Quando veio a pandemia, muitas pessoas começaram a perceber dificuldade em seu dia a dia, na organização mesmo. A sensação é que a gente demora mais para fazer as coisas, que meu dia tem menos horas. Então nossa alimentação, por exemplo, era sempre a mesma, nossa organização sempre a mesma e se eu mudasse, era um tormento, tudo muito mais demorado. 

    Qual é o perfil principal dos seus pacientes?
    Hoje atendo muitos adultos, e a maioria deles tem alguma habilidade que compensa a sua dificuldade, como eu disse anteriormente. Quando o assunto é autismo e superdotação, os estudos os dividem em três grupos. Um deles são as pessoas que têm dificuldades de fala ou outra coisa tão evidente que serão tratadas como incapazes, e sua alta habilidade nunca vai ser identificada. 

    Há o grupo que fica no “zero a zero”, a maioria dos meus pacientes: não recebe atenção para suas dificuldades nem estímulo para vir a descobrir e desenvolver sua alta habilidade. 

    E existe ainda o grupo que tem uma alta habilidade tão evidente que receberá estímulo somente em relação a ela, mas nenhuma atenção para as suas outras dificuldades. Infelizmente, nós ainda vivemos em uma sociedade que supervaloriza demais o funcionamento dessa pessoa, ninguém pensa que um adulto doutorando ou uma criança acima da média possa ter algum problema, porque eles estão acima da média no aproveitamento escolar, por exemplo. 

    Recebo muito esse perfil de pessoas que deram conta das demandas da sociedade, mas não receberam nenhum suporte para seus outros sofrimentos. 

    Sua rigidez, centralização, impulsividade, hiperatividade, essas características todas são tidas como algo da personalidade da pessoa, ou algo que, se ela quiser, consegue mudar e superar. Não como um indicativo para algo maior.

    Quando falamos de neurodiversidade, do que falamos afinal?
    O conceito de neurodiversidade surgiu não num contexto de diagnóstico, mas na ideia de que todas as pessoas são diferentes. Idealmente, o conceito de neurodiverso era para ser um conceito de inclusão, porque as pessoas têm funcionamentos neurológicos diferentes da mesma forma que têm peles diferentes. Então existem funcionamentos que já se tem diagnósticos, como o autismo, ou asperger, o TDAH, a bipolaridade. O viés médico ainda é muito forte, mas o que se discute em algumas vertentes da neurodiversidade é que um domínio médico cuide somente do adoecimento da pessoa, e não tanto do diagnóstico ou do funcionamento da pessoa.

    Mas então como as pessoas conseguiriam seus diagnósticos, tão importantes para elas entenderem por que se sentiram diferentes a vida toda?
    Idealmente seria autoidentificado esse espectro por elas mesmas, como é a questão de gênero e até de orientação sexual hoje em dia, e que um dia também já foram da alçada do médico. Com base na divulgação do conhecimento e dos sintomas, a pessoa mesmo se identificaria. Mas, na nossa sociedade, se você é autista e precisa de uma adaptação, não basta você no seu trabalho dizer que precisa: a gente ainda tem essa necessidade de um motivo e uma descrição de qual adaptação você vai precisar, assinada por um médico. 

    Isso deveria morar até na educação básica, que indicaria diferenças sensoriais entre as pessoas desde cedo. 

    Meu filho lembra da antiga escola como “escola barulhenta”, porque ele tem hipersensibilidade auditiva. Não fomos educados para identificar as diferenças sensoriais de cada pessoa, a gente acha que todo mundo vê igual, escuta igual, que o toque é igual para todos. 

    Se a gente tivesse essa leitura de que os estímulos sensoriais ressoam diferente nas pessoas, já seria um adiantamento muito grande. 

    Uma sala de aula cheia de estímulo visual, para uns pode ser estimulante, para outros pode sobrecarregar. É a mesma coisa com a carga horária. Tudo isso tinha que ser levado em consideração. Eu hoje uso abafador nele. E sempre usei recursos de antecipação: contar pra ele antes o que vamos fazer, coisa que ninguém fazia comigo e eu preferiria que tivesse feito, porque para muitos autistas essa organização é fundamental, evita ansiedade.  

    Quais são as principais discussões e “polêmicas” quando se trata de neurodiversidade? 
    A Judy Singer, que foi quem cunhou esse termo, criou um grupo para discutir como durante muito tempo tivemos um olhar mais para o comportamento dos pais, e como aquela criança autista poderia ser fruto de um trauma. Hoje a gente sabe que de 80 a 90% é genético, e estão sendo diagnosticados muitos filhos de pais que nunca foram. 

    E então muitos pais estão descobrindo que têm autismo, como foi meu caso – e isso é revolucionário. 

    O trauma até hoje foi supervalorizado e a gente desconsidera nesse processo que esses pais que “traumatizaram” os filhos podiam ser pais neurodiversos também. E então isso justifica a transmissão de muitas características. Na questão entre homem versus mulher, o que se sabe é que mulheres são menos diagnosticadas. 

    A proporção oficial é de uma mulher diagnosticada para cada 4 homens. 

    E discute-se hoje que esse dado se dá provavelmente porque essas mulheres mascaram melhor: elas têm mais recursos e acabam parecendo uma pessoa típica. Questões culturais também acabam se envolvendo, então a gente tende a acreditar que uma mulher com dificuldade de regulamento emocional é só “uma mulher sendo uma mulher”. 

    Tanto que a histeria está aí, é um diagnóstico quase que só feminino. 

    A gente tem a TPM também, que todo mundo fala. São muitas crenças relacionadas a como se comporta a mulher que tornam bem normais aquele comportamento socialmente aceito de explosão, descontrole emocional. Acaba ficando naquilo de “mulher é assim mesmo”. 

    Quais os avanços em diagnóstico e abordagem de tratamento?
    Hoje o que é mais legal – e que tenho até dificuldade de conseguir, mas acho que tem alto potencial terapêutico apesar dos poucos estudos – são as terapias de integração sensorial, que são feitas por um terapeuta ocupacional. Esse tipo de terapia trabalha os estímulos que podem impactar na vida dessa pessoa, como o som, por exemplo. Muitas pessoas até mesmo com problemas de sono é porque têm algum distúrbio da interação social, algo da base sensorial que pode gerar particularidades de rigidez em casos mais sérios. 

    Essa terapia vai discutir a adequação do ambiente para a pessoa, se é um ambiente com excesso de estímulo ou com falta de estímulo. 

    Vem de uma terapeuta ocupacional – e também a neurociência tem estudado, se tornou um ramo dessa parte de integração social. Na área de saúde mental geral, há pesquisas que também já olham para esse processamento sensorial em pessoas com diagnósticos de esquizofrenia e bipolaridade e pessoas com transtorno de estresse pós-traumático: todas elas podem ter problemas no processo sensorial e isso explicaria muita coisa em suas vidas. 

    A parte farmacológica, na minha opinião, ainda patina, porque não entendemos muito bem nem a origem da questão, nem a causa, mas já vejo avanços na terapia canábica.

    Há ainda outras tentativas em que há estudos de baixa evidência. O grupo dos autistas, aliás, tem baixa evidência para muita coisa. Até mesmo para uma escala de depressão não se consegue ter uma exatidão, porque aquela escala foi desenvolvida pensando em um comportamento típico.

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