• “A atividade física é curativa, preventiva e protetora”, diz médico do esporte Gustavo Magliocca

    Entrevista com Gustavo Magliocca, um dos fundadores da rede de clínicas Care Club
    Gustavo Magliocca é médico do esporte.
    Jose Renato Junior | 16 maio 2022

    Por trabalhar preventivamente estudando o funcionamento e a resposta do corpo às atividades físicas, pode-se dizer que os médicos do esporte têm uma função educativa, de recomendar hábitos de vida ao paciente, enquanto colegas de outras especialidades atuam mais reativamente, focados em combater patologias.

    Gustavo Magliocca já tinha essa visão holística desde antes de iniciar a residência em Medicina do Exercício e do Esporte na USP – da qual ele integrou a segunda turma. “Eu sempre tive vontade de melhorar a vida das pessoas com as ferramentas disponíveis”, diz. 

    Em sua especialidade, identificou logo três ferramentas: o esporte, o exercício físico e a atividade física (movimentos cotidianos). Além disso, alimentação, sono, hidratação e equilíbrio emocional entram no pacote de saúde dele. 

    Esse entendimento sobre o tratamento de lesões, sobre o diagnóstico do tipo ideal de atividade física de acordo com biótipo e sobre a pesquisa de novos métodos de treinamento esportivo fez com que, em 2010, Gustavo fundasse a Care Club junto com os fisioterapeutas Cássio Siqueira e Renan Malvestio.

    Hoje, a Care Club é uma rede de 11 clínicas de saúde multidisciplinar com 280 colaboradores e que faz 12 mil atendimentos por mês. Sob o conceito de one stop shop, ela reúne medicina do esporte e do exercício, ortopedia, nutrição, fisioterapia com reabilitação e reeducação funcional, treino físico, academia e spa. Atende de forma integrada atletas ou pessoas que colocam a atividade física em sua rotina. 

    As 11 clínicas da rede Care Club atendem 12 mil pacientes por mês, em média. (Foto: divulgação)

    A história da Care Club reflete a popularização da medicina do esporte nos últimos anos. Em 2010, quando foi fundada, a clínica era uma sala de 30 m2. Quem chegava ali eram atletas, muitos amadores, que queriam fazer maratonas, Iron Man e outras provas de resistência. 

    Em 2017, já bem estabelecida, a Care Club passou a atender atletas profissionais como os nadadores Cesar Cielo, Bruno Fratus e Tiago Pereira e os judocas Mayra Aguiar e Felipe Kitadai. 

    Por volta de 2019, foram aparecendo pessoas com um nível menos intenso de prática de atividade física. “Foi quando começamos a popularizar a ideia de que a atividade física é curativa, preventiva e protetora”, conta Gustavo.

    Hoje, aos 41 anos, além de clinicar, Gustavo acumula o cargo de chefe do Departamento Médico da Sociedade Esportiva Palmeiras, acompanhando de perto o time de futebol masculino profissional.

    Ele já passou por outras modalidades esportivas como diretor médico da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA) e participou dos Jogos Olímpicos de Londres 2012 e Rio 2016. 

    Confira, a seguir, um bate-papo em que Gustavo Magliocca comenta sua jornada na medicina do esporte com Future Health:

    FUTURE HEALTH: Como você encontrou sua vocação para Medicina do Exercício e do Esporte?

    GUSTAVO MAGLIOCCA: Me interessei pela Medicina do Exercício e do Esporte desde quando a residência surgiu no Hospital das Clínicas da USP, onde me formei. Participei da segunda turma do programa e fiz os três anos de residência e mais dois complementares.

    Meu interesse no início da graduação, porém, era outro: me imaginava fazendo cirurgia plástica… olha que loucura! Acreditava, então, que ao dar uma forma diferente aos corpos dos pacientes, faria diferença na vida deles, traria boas histórias aos meus clientes. 

    Porém, ao longo do internato (últimos anos de medicina na faculdade), descobri que não servia para operar. Não tenho paciência para ficar no centro cirúrgico. Não consigo ficar mais de uma hora, no mesmo lugar, parado de pé. Imagine que algumas cirurgias plásticas demoram seis, oito horas…

    Dei um passo atrás, esqueci a cirurgia e passei a estudar carreiras como administração hospitalar e publicidade associada à medicina. Ao longo dessa busca, em 2007, fui convidado por um colega de faculdade a atender jovens atletas nas categorias de base do Palmeiras. Foi aí que me apaixonei pela Medicina do Esporte… aquilo de você ir pra beira do campo e, por meio da ciência, ajudar o treinador, o preparador físico e toda a delegação com inputs em relação ao desenvolvimento e desempenho dos atletas.

    Essa experiência foi excelente porque me levou do céu – realizar o sonho de ter o primeiro emprego logo no time de coração – à primeira grande frustração profissional: minha devoção à medicina do esporte acima de qualquer coisa começou a incomodar os ortopedistas que trabalhavam comigo no clube. Esse desconforto que causei me fez ser demitido cedo. A partir daí, me organizei para me aprofundar na medicina do esporte. 

    FH: Você sempre quis trabalhar com atletas de alto rendimento?

    GM: Não. Quando entrei na residência, entendi que ia trabalhar com atividade física. Do mesmo jeito que o cirurgião usa o bisturi, o médico do esporte usa a atividade física para benefíciar as pessoas. Era o que eu queria para minha vida. 

    As minhas ferramentas eram e continuam a ser: o esporte – com o atleta profissional ou amador; o exercício físico – o que a gente faz para atingir determinados objetivos físicos; e a atividade física – subir uma escada, andar na rua para ir de um lugar a outro, etc.

    FH: Quais eram os desafios da medicina do esporte quando você iniciou sua carreira? 

    GM: Quando me formei, os médicos do esporte focavam em teste ergoespirométrico [ou teste cardiopulmonar: associação de um teste ergométrico convencional com a análise do ar espirado pelo paciente, que serve para medir parâmetros respiratórios como consumo de oxigênio, produção de gás carbônico, frequência respiratória e ventilação pulmonar] e exame físico ortopédico, mas não operavam. 

    Eu não! Juntava um pouquinho de tudo e fazia com que o atleta melhorasse a sua condição física, em função de uma lesão, ou esportiva, em função da sua performance. Comecei, então, a fazer isso tanto com atletas profissionais como com atletas em formação ou amadores – que queriam fazer um triatlo, correr uma maratona…

    Comecei essa jornada muito jovem e tive padrinhos importantes na carreira. Primeiro, no Esporte Clube Pinheiros, onde fui contratado para trabalhar na Vita, uma clínica de medicina ortopédica. Depois, os treinadores que lá estavam me abraçaram, em especial o Alberto Pinto da Silva, da natação, que é muito tradicional lá [formando medalhistas olímpicos como Bruno Fratus, Cesar Cielo, Gustavo Borges e Poliana Okimoto]. 

    O Alberto disse: “É de um médico como você que eu precisava do lado da piscina, que molha o pé, que cheira cloro”.

    Comecei a desenvolver um belo trabalho com ele. Até então, ele sofria com atletas asmáticos, que apresentavam crises respiratórias, e com atletas que perdiam treino porque estavam gripados e eram afastados por cinco a sete dias. 

    A partir dos bons resultados na natação, passei a interagir com outros treinadores no Pinheiros: no judô, no basquete, no handebol, no vôlei e no levantamento de peso. Essa interação contribuiu para que eu desenvolvesse uma leitura específica para cada esporte.

    FH: Um médico do esporte pode trabalhar em todas as modalidades esportivas?

    GM: O médico do esporte consegue, dentro do seu processo de formação, acumular conhecimentos específicos de cada modalidade esportiva. Então, não é preciso ter médicos diferentes para cuidar de esportes diferentes.

    Eu mesmo fui médico das seleções brasileiras de rúgbi (2007), de natação (2011-2016), de judô (2008-2012) e voltei a trabalhar no futebol em 2013. Ou seja, minha carreira passa por vários esportes.

    FH: E quais são os desafios da medicina do exercício e do esporte hoje?

    GM: A dificuldade de 10, 12 anos atrás era contar para as pessoas que existia uma medicina que ia além de resolver um problema de dor em algum segmento do corpo. As pessoas entendiam que havia um médico que cuidava de atletas e outro que resolvia problemas de dor. E não tem nada a ver com isso! 

    O médico do esporte ajuda equipes multidisciplinares a desenvolver o melhor de um indivíduo na prática esportiva ou na prática da atividade física. Serve para atletas profissionais e amadores e até para quem nem atleta é.

    Hoje em dia, nossa maior dificuldade é concorrer com charlatanismo. Há profissionais que não são especializados em medicina do esporte e se passam como tais para trabalhar com atletas. 

    FH: Que ferramentas o médico do esporte tem para apoiar um atleta ou uma pessoa que despertou para a necessidade de atividade física para evitar doenças crônicas, como as cardiopatias e diabetes? Qual é a base do trabalho que você realiza hoje? 

    GM: Para prevenir doenças cardiovasculares, por exemplo, o primeiro exame que tenho de fazer é de estratificação de risco cardiovascular para, depois, em cima desse exame, prescrever a atividade e a pessoa poder fazê-la rotineiramente. 

    No Care Club, testes ergoespirométricos são feitos com atletas profissionais, amadores e pessoas interessadas em incluir atividades físicas na rotina. (Foto: divulgação)

    A gente também aconselha que todo mundo faça, anualmente, seu teste ergométrico. “Ah, mas eu sou atleta, eu gosto de entender melhor o funcionamento do meu componente fisiológico” – que é a inter-relação entre coração e pulmão. Aí, faz-se um teste ergoespirométrico.

    Outra coisa que a gente olha muito: o comportamento mecânico e motor dos músculos, tendões e ligamentos. É importante que o médico do esporte esteja atento ao desenvolvimento, à proteção e, predominantemente, ao tratamento de problemas motores que o paciente venha a apresentar.

    “Mas isso não é papel do ortopedista?” Sim, quando o médico do esporte entende que bateu no seu limite.

    O médico do esporte tem uma participação inicial na proteção de seu paciente com orientações adequadas. Se houver um diagnóstico mais complexo, o ortopedista vai cuidar. 

    Tanto que os melhores companheiros do médico do esporte no consultório são: um bom cardiologista e um bom ortopedista, para que as especialidades interajam.
    É importante as pessoas entenderem que isso não é concorrência, mas sim uma construção conjunta para o paciente. 

    Na medicina preventiva, especialidades diferentes não precisam concorrer. O foco não é em quem fica com o paciente, mas nos benefícios que podem entregar, em conjunto.

    FH: Dores por overuse (microtraumas causados pelo excesso de repetições), lesões por esforço repetitivo (LER) e fibromialgia podem ser tratadas pelo médico do esporte? 

    GM: Sim, essa é minha carreira. É fazer com que as pessoas entendam a atividade física como um meio de obter saúde. Eu busco tornar meus pacientes mais ativos, mais funcionais, melhorar a capacidade de suportar um quadro crônico através da prática regular de atividade física.

    FH: Existe um novo profissional que surgiu no mercado de alguns anos para cá – o health coach. Como um paciente pode distinguir se ela precisa de um coach de saúde ou de um médico? São atividades complementares?

    O médico do esporte é um clínico, por isso, está envolvido em todos os detalhes relacionados à prática diária de atividade física. Mais do que isso, ele atenta para o efeito que essa atividade causa no paciente. Eu, por exemplo, me concentro no objetivo do paciente. 

    A gente sabe que tem várias pessoas querendo navegar ali na órbita da rotina do paciente. Eu tenho dificuldade de competir com essas pessoas. Acredito que, se for para ajudar a ter um bom ciclo, em que a pessoa se concentra em hábitos preventivos, em hábitos positivos para o dia a dia, por que não? Aí, eu quero mais é esse coach perto de mim, pra gente construir uma pessoa mais saudável a cada dia. Agora, se for para ter uma pessoa possessiva, que se diz dona da rotina do paciente, fico decepcionado. 

    Sempre digo que a atividade física é uma ciência. A base da saúde é composta por atividade física, alimentação, hidratação, sono e saúde mental. Se em algum momento, os profissionais se juntarem para gerar isso ao cliente, ótimo. Se as pessoas competirem por mercado e tirarem do paciente o ganho de saúde, alguma coisa está errada.

    FH: Segundo o Atlas Mundial da Obesidade 2022, o Brasil deve ter quase 30% de adultos obesos em 2030. Na América Latina, nós temos o pior índice de atividade física. Por que é tão difícil fazer nossa população se movimentar?

    GM: Tem dois temas que me preocupam em relação à população e à saúde pública no Brasil: sedentarismo e obesidade. 

    A obesidade acontece pela má qualidade da nossa dieta. O brasileiro come mal. Não é só aquela desculpa de que gostamos da alimentação mais calórica e mais rica em carboidrato. A gente também tem horários ruins pra comer. A gente come errado, a nossa base dietética é ruim.

    Ao mesmo tempo, a atividade física é pouca. Somos muito bons em procrastinar, em encontrar desculpas para iniciar uma rotina de atividade física.

    FH: Como os wearables (tecnologias vestíveis) – pulseiras e relógios com sensores que monitoram frequência cardíaca, passos, calorias, saturação de oxigênio, qualidade do sono etc. – ajudam na sua prática clínica?

    GM: Sou super defensor do uso da tecnologia para acompanhamento, controle e prescrição da atividade física. Óbvio que, por vaidade, é lindo ter um relógio bonito, mas como é bom você saber quantos passos deu, por quantos minutos você se levantou, quantos minutos você ficou sentado. São dados fundamentais para a construção da saúde. E esses dados não são para o treinador. 

    Se você é uma pessoa preocupada com sua saúde, se preocupe em saber o que pode ajudar a gerenciar seu sono, seu movimento, seu batimento cardíaco, enfim, sua saúde como um todo.

    FH: Você pede para os pacientes fazerem algum registro ou trazerem relatórios emitidos por essas tecnologias vestíveis? 

    Sim! Eu olho se a pessoa está com algum tipo de relógio inteligente e peço para me mostrar ou enviar os registros. Assim, analiso quão familiarizado e quanto ele utiliza da ferramenta. Gosto muito dessas tecnologias vestíveis e acho que elas mudaram a vida dos pacientes assim como uma visão preventiva mudou a forma das pessoas enxergarem a saúde.

    FH: Você vê algum aspecto negativo ou contraindicações no uso dos wearables? Saber o desempenho físico durante o treino pode fazer a pessoa forçar demais?

    Já tivemos pacientes assim e o excesso é ruim para tudo. O excesso na dieta é ruim. O excesso na atividade física é ruim. O excesso no uso da tecnologia é ruim. Eu acho que a pessoa ser extremamente dependente da tecnologia é ruim. O ideal é usar a tecnologia para o bem-estar: ser o senhor de tudo aquilo e não ter  a tecnologia como seu senhor. É isso que converso com os clientes e tento construir no dia a dia do consultório.

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