O avanço do uso da cannabis medicinal ainda traz dúvidas e preconceitos quando se fala de uma das substâncias mais conhecidas da planta: o tetrahidrocanabinol, o famoso THC.
Juntamente com o canabidiol, o CBD, o THC é o canabinoide mais abundante e estudado da planta. Apesar de oferecer efeitos psicoativos – e daí sua demonização por parte de alguns médicos e da sociedade no geral – quando administrado nas doses certas, ele promove uma série de benefícios à saúde, atuando no tratamento de doenças, incluindo algumas graves.
A anestesista e prescritora Daniele Tondolo Martins explica:
“As principais causas do medo de usar ou da demonização do THC são a falta de conhecimento e o preconceito.”
Daniele destaca o fato de vivermos em um mundo em que a maconha tem um peso negativo forte e que o proibicionismo alimenta uma narrativa que está sendo descontruída aos poucos.
“Acredito que tudo parte do conhecimento e, por vezes, o preconceito impede que profissionais da área médica estudem sobre a cannabis”, completa.
Formada pela Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre (FFFCMPA) e especializada pela Faculdade Federal de Rio Grande (FURG), Daniele é pós- graduada em Cannabis Medicinal pela Unyleya, além de membro da Cannabis Academy e da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (SBEC).
Uma das estratégias usadas pela médica é disseminar informações de qualidade e que deixem os pacientes seguros em usar medicamentos à base de cannabis que contenham o THC. Para isso, ela explica detalhadamente durante a consulta a história da planta, como cada substância age e os benefícios reconhecidos por estudos robustos e confiáveis ao redor do mundo.
“Além disso, proponho um acompanhamento de perto do uso da cannabis, sempre observando com o paciente reações, efeitos adversos, como está respondendo ao tratamento. Assim, eles ficam seguros e, ao sentir a melhora, o medo vai se dissipando”, relata Daniele.
Para a médica, o conhecimento superficial da atuação da substância é outro problema para a prescrição correta. No geral, o THC é prescrito juntamente com o CBD nos medicamentos full-spectrum, isto é, que trazem todas as substâncias da planta. Ambos interagem com o sistema endocanabinoide, mas por meio de mecanismos distintos. Em alguns casos, como dores crônicas e espasticidade, é indicada uma dose maior de THC.
Enquanto se aceita melhor o uso da substância em maior dose para estas duas questões, existem outras indicações que melhoram drasticamente os sintomas de muitos pacientes. E a prática médica de Daniele traz evidências poderosas dos resultados na melhora da qualidade de vida de pessoas com sequelas de AVC, em tratamentos oncológicos, na recuperação muscular de esportistas e até em quem sofre com enxaqueca crônica incapacitante.
Um dos casos mais emblemáticos tratados por Daniele é o de uma paciente de 58 anos que teve um AVC e ficou com limitações, dores, espasticidade e formigamento intenso no rosto.
“Iniciamos o uso do CBD e depois fomos aumentando a concentração de THC. A melhora é evidente: ela se sente mais disposta e já caminha de 40 a 50 minutos na praia”, comemora a profissional.
“Na primeira consulta, ela não conseguia nem falar com clareza e agora já conversa, fala onde está a dor. Outro ganho foi na melhora do sono e, com isso, a retirada da quetiapina que usava para dormir. Também conseguimos parar com os analgésicos e controlar a dor apenas com cannabis”, diz.
Daniele frisa que os resultados apresentados no tratamento com a planta trazem outro benefício importante: a diminuição da polifarmácia, que costuma ser uma questão problemática para pacientes tanto pela ingestão concomitante de medicamentos que trazem efeitos colaterais, como para o bolso, pelos custos de tomar muitos remédios regularmente.
Outro relato impactante é o de um paciente de 56 anos com câncer de pulmão metastático e em estado terminal.
“Ele chegou em março pesando apenas 43 quilos e com a previsão de cerca de 30 dias de vida. Começou o tratamento com cannabis medicinal, incluindo uma dose alta de THC, e já está com 60 quilos, com o apetite recuperado e melhora no humor. Até mesmo o antidepressivo tradicional e o medicamento para dormir já foram retirados”, conta.
Apesar dos resultados positivos no dia a dia, contudo, a anestesista alerta: “é preciso estudar a fundo para entender a indicação correta. O THC em maior concentração não é uma substância indicada para todos os casos. Ter segurança e conhecimento sobre o canabinoide é essencial”.
O THC também já é considerado um composto valioso para o tratamento de glaucoma, já que reduz a pressão interna do olho. As propriedades anti-inflamatórias inclusive as do trato gastrointestinal, como doença de Crohn e retocolite ulcerativa, também já são reconhecidas para estas patologias.
De acordo com Daniele, o uso do THC ainda requer mais estudos e evidências em crianças e adolescentes, por isso, a indicação precisa pesar bem os prós e os contras e o uso de forma segura. Atletas profissionais, que passam por exames de antidoping, também precisam alinhar a utilização da substância de acordo com a agenda de treinos e competições.
“De qualquer forma, temos formas de tratar diversos quadros com cannabis de forma segura, com o uso de ferramentas como os testes genéticos, que ajudam a identificar como cada um metaboliza as substâncias da planta, além de usar medicamentos com formulações broad-spectrum, isto é, sem nenhum traço de THC”, finaliza.