• “A dificuldade nos fez melhor: baixamos custo e nos conectamos com fornecedor que eu não sabia que existia”, diz diretor da GE Healthcare

    O executivo Nelson Garcia assumiu o comando da divisão de saúde da General Electrics bem no meio da pandemia. Nesta entrevista sincera, ele conta a loucura que foi ter que negar, por falta de produto, ventiladores mecânicos ao governo, a sensação dúbia de ter que mandar colaboradores para a linha de frente e as inovações que surgiram do caos
    Jose Renato Junior | 26 maio 2021

    Há 22 anos na GE Healthcare, divisão de saúde da General Electrics, o atual diretor-executivo da empresa no Brasil Nelson Garcia é um apaixonado por surfe. E, embora brinque dizendo que não é muito afeito a ondas grandes, teve que enfrentar um tsunami no primeiro semestre do ano passado. 

    “Antes mesmo de a pandemia começar, eu estava envolvido com os famosos ventiladores mecânicos, os respiradores”, conta ele. “Então veio a pandemia, e eu acho que esse foi um momento histórico na carreira de todo mundo que trabalha com suporte à vida.”

    O mercado de suporte à vida, conta o executivo, nunca foi de grande escala. “Mas naquele momento, no começo, tudo virou uma grande loucura. Meu telefone não parava de tocar.” 

    Nelson conta que as ligações, que vinham de autarquias como o Ministério da Saúde ou grandes conglomerados corporativos, eram uma baita pressão. Todos queriam ventiladores – mas não existia estoque.

    “O que eu poderia falar para eles? Eu não tinha o que dar. Era uma demanda maluca. Então eu comecei a pandemia nessa grande loucura.”

    A maré não baixou: em outubro, Nelson foi promovido a diretor-executivo da operação nacional e deixou sua função como executivo CCS (Clinical Care Solutions) Latam. “Assumi toda a operação do país nesse turbilhão”, lembra. 

    “Estou na GE há bastante tempo, já conhecia a estrutura. Mas, sempre que assumo um novo desafio, faço um entendimento de risco, uma matriz de impacto. E não foi nada disso. Foi só: como a gente vai sobreviver?”.

    A GE Healthcare não só sobreviveu como se reinventou na pandemia. No ano passado, a divisão ultrapassou a marca de R$ 1,3 bilhão em negócios no Brasil. Globalmente, o crescimento foi de 4% em relação a 2019.

    No país, a GE Healthcare tem uma base instalada superior de quase 200 mil equipamentos, sendo que mais de 90% deles já são conectados. Em 2020, a divisão estava presente em mais de 19 mil clínicas e hospitais aqui.

    Entre as novidades da pandemia, a empresa implementou uma nova área no fim do ano passado batizada de OneDigital. Para liderá-la, trouxe da IBM Thiago Galan, até então líder de vendas Latam para Watson Health e Life Sciences. 

    A OneDigital reúne os esforços digitais da companhia e tem como missão propor e criar soluções mais eficazes para hospitais, profissionais da área e pacientes – para estes, com diagnósticos mais precisos e rápidos. 

    Uma das primeiras iniciativas da nova área foi a criação e o lançamento da nova versão do GE LiveRoom, que a empresa apelidou de “Netflix dos profissionais de saúde”.

    A plataforma é agora um serviço de streaming com conteúdos educacionais, webinars e workshops, além de chats para interação com executivos e colaboradores da empresa. 

    O primeiro serviço de streaming de uma healthtech na América Latina traz também um tour virtual pelas soluções e equipamentos da empresa, como uma expo digital.

    Ainda durante a pandemia, a GE Healthcare, em parceria com a Rede D’Or, instalou o CT in a Box, um tomógrafo de alta precisão e definição de imagens alojado dentro de um contêiner. Entre os meses de maio e agosto, mais de 700 exames foram realizados no aparelho.

    A empresa também disponibilizou para o Hospital das Clínicas de São Paulo, gratuitamente, a EDC (Edison Datalogue Connect), uma plataforma colaborativa em que a comunidade médica troca informações e conhecimento sobre pacientes e exames. Assim, agiliza diagnósticos e compartilha conhecimento.

    Abaixo, Nelson conta, em uma entrevista sincera, sobre esses sustos e aprendizados da pandemia, inovações na GE Healthcare, parcerias com o ecossistema de startups – e até sobre surfe.

    Como foi assumir a operação brasileira da GE Healthcare no tsunami da pandemia?
    Estou na GE há 22 anos. E, antes da pandemia começar, estava justamente envolvido com os famosos ventiladores mecânicos, os respiradores. A pandemia começou, e foi um momento histórico na carreira de todo mundo que trabalha com suporte à vida. O mercado nunca foi de grande escala, mas naquele momento foi uma grande loucura. Meu telefone não parava de tocar. “Você pode falar com o Ministério da Saúde?” O que eu poderia falar para eles? Eu não tinha o que dar. Era uma demanda maluca. Então eu comecei a pandemia nessa grande loucura. 

    Presidente de empresa fazia contato dizendo que queria fazer doação e, para isso, precisava comprar ventilador, e que a GE era uma empresa confiável para isso. Só que a gente não tinha para entregar. 

    Foi muito difícil. Foram noites muito mal dormidas, trabalhando com a Ásia, de madrugada – porque a GE construiu uma fábrica no meio da pandemia para tentar suprir a demanda global. Apesar de a gente se achar experiente, me sentia amplamente impotente – eu pelo menos me senti assim. Um grupo de pessoas do meu time interno pedindo para eu dar um jeito. E, quando eu ligava para fora, o pessoal falava: não temos suprimentos para atender a demanda global. 

    Infelizmente, a fábrica da Itália foi fechada para atender a demanda da Itália. A fábrica dos EUA foi fechada para atender a demanda dos EUA. E nós? Não tínhamos uma fábrica de ventilador aqui. 

    Temos fábricas de outras coisas, mas não de ventilação mecânica [a empresa acabou fazendo parceria com a Ford e a 3M para a produção]. Nesse turbilhão, eu assumi toda a operação do Brasil. Estou na GE há bastante tempo, já conhecia a estrutura. Mas, sempre que assumo um novo desafio, faço um entendimento de risco, uma matriz de impacto. Lá não foi nada disso. Foi só: como a gente vai sobreviver? Como que eu mando um engenheiro ou um treinador de equipamentos para um hospital sabendo que não conhecíamos quase nada da doença na época? 

    E como você fez isso?
    Vivi um dilema grande, porque ao mesmo tempo que eu queria atender o meu cliente para ele atender quase toda a população, eu me colocava nessa situação: como vou mandar um amigo, que é um engenheiro de campo, para dentro de um hospital, morrendo de medo do vírus. 

    Acho que foram os momentos mais difíceis da minha vida profissional. 

    Porque eu tinha que entrar numa chamada com esse grupo e falar: a nossa carreira foi forjada para viver esse momento. Vocês são engenheiros de tomografia, de ressonância magnética, de ventilador, de monitor. E, se vocês não fizerem isso, quem vai fazer? Ao mesmo tempo, me sentia fraco em falar isso, porque eu estou protegido aqui na minha casa, eu não saio dela há um ano e meio já. 

    Por isso vivi entre ter vulnerabilidade/empatia por meu colaboradores, enquanto tinha que mandá-los para o meio do fogo.

    Para mim foi um desenvolvimento muito grande de carreira. Ao mesmo tempo, desenvolveu várias coisas na empresa. O treinamento dos clientes, por exemplo, sempre foi no local, no hospital. Na pandemia, nós mandamos equipamentos para as casas das pessoas para elas serem treinadas via Teams ou Zoom. Quantas tecnologias não são desenvolvidas em virtude da dificuldade? 

    A dificuldade nos forjou, nos fez melhor, nos fez baixar custo, nos fez conectar com o fornecedor que eu não sabia que existia, nos fez ter ambições diferentes. 

    Para a GE, o negócio nunca foi só sobre dinheiro. Sempre criamos propósitos. Essa parte do propósito de trabalhar com saúde, no entanto, tomou ainda mais espaço na nossa vida, na nossa mente, nos nossos corações. E tudo isso fez o nosso propósito aumentar. 

    Você disse recentemente que evoluíram o equivalente a dez anos em termos de tecnologia neste tempo. Como assim?
    Pense por exemplo na Anvisa. A gente levava para de um ano a um ano e meio para a agência reconhecer produto para podermos vender no Brasil. Começamos com a pandemia a aprovar produto em, literalmente, semanas. Essa é uma evolução, sentida principalmente para aprovar softwares e soluções. Temos uma solução em parceria com o Hospital das Clínicas no sentido de levar diagnóstico para a ponta, porque houve várias doações de equipamentos para eles, mas e o médico lá na ponta, estava treinado? Não, não estava treinado, ele não sabia o que fazer com aquela tecnologia. 

    O software que rodou no HC não era algo que a gente aprovaria no ano de 2020, era algo que viria só lá no futuro, mas acabou sendo antecipado para a guerra da pandemia. 

    Temos uma tecnologia na área de ventilação mecânica que estava no pipeline para ser lançada em cinco anos, mas vai ser lançada ano que vem. Temos também uma outra tecnologia de ressonância magnética que faz interpretação de exame, reconstruindo a imagem de maneira artificial através simplesmente de dados. Ela dá insights para o médico do que possivelmente é aquela imagem, qual é a patologia. Era para chegar muito mais no futuro, mas está agora já disponível no mercado e foi lançado ao mesmo tempo nos EUA e no Brasil. 

    A GE Healthcare já ganhava bastante protagonismo dentro da GE, mas agora ela de fato está nos holofotes. O que era essa divisão há algum tempo e o que ela é hoje?
    A GE Healthcare é grande no Brasil, não por causa da pandemia. Ela nasceu há mais de 120 anos, e já está há um século aqui no Brasil. Temos uma fábrica que foi inaugurada em meados de 2010, em Contagem [Minas Gerais, também a primeira da empresa na América do Sul]. A importância do Brasil para a GE Healthcare vem de muito antes da pandemia, por isso que a gente vem sendo um dos protagonistas no combate à Covid-19. O Brasil é importante para a empresa porque a grande maioria do nosso line-up de produtos é fabricado aqui no Brasil. A pandemia veio reforçar a importância da nossa empresa para o Brasil e a importância do Brasil para a nossa empresa. 

    Como é a estrutura de inovação na GE Healthcare?
    Hoje, para a GE Healthcare, o investimento em pesquisa e desenvolvimento gira em torno de 6 a 7%, do que a gente fatura. E por que é tão alto o volume de investimento? Porque o que a gente está pesquisando hoje, pelo fato de nosso mercado ser totalmente regulado, vai virar produto daqui a oito, dez anos. No melhor dos casos, e a pandemia vem ajudando a acelerar isso, em três, quatro anos. É preciso pesquisar muito, muito, e testar mais ainda para depois colocar no mercado. 

    No Brasil a gente tem uma célula e parte dela está no Rio de Janeiro. Temos uma parceria com a UFRJ, onde contamos com um local só para desenvolvimento de tecnologia. 

    A GE desenvolve tecnologia clínica de uma maneira muito ampla. Mas aqui na América Latina temos trabalhado mais no conceito “One GE”. Nosso software é o que “cola” todo o line-up dos nossos equipamentos. Desde a mamografia até o ultrassom e o contraste, tudo tem uma cola que faz o médico conseguir navegar no pathway da doença, no pathway da convalescença do paciente, que é o software. Esse software vai trazer mais agilidade, mais descobertas. E parte dele é desenvolvida aqui no Brasil e na América Latina. 

    O que exatamente é a OneDigital e o que vem saindo de lá?
    A GE é uma empresa complexa, então você vai ter soluções digitais saindo da área de mamografia, por exemplo – inclusive fizemos uma aquisição agora de uma empresa, uma startup na França, a Zionexa, que trabalha com diagnóstico tumoral para mama. E também da área de ultrassom, life care solutions e ressonância. É legal porque temos cada um olhando para sua área, mas isso gera fragmentação. 

    Percebemos que tínhamos muita inovação, mas tudo fragmentado. E veio a necessidade de se criar o OneDigital. 

    Na América Latina nossa liderança para OneDigital é uma pessoa que veio da IBM, Tiago Galan, que já vem com uma bagagem grande. A função do Tiago é justamente harmonizar tudo para que nós mesmos, colaboradores, e o cliente e o usuário entendam como tudo pode funcionar de maneira sincronizada. O grande desafio é orquestrar esse negócio todo, porque muitas vezes uns estão tocando heavy metal e outros estão tocando ópera. OneDigital vem para isso. E, claro, todo o universo de workflow e de gestão também faz parte do One Digital.

    Como a GE trabalha com o ecossistema de startups aqui no Brasil? 
    Nós seguimos num esquema global. Quando a gente podia viajar, eu estive na Finlândia, em 2019, e me deparei com um ecossistema que a GE tem dentro da fábrica, de inovadores, podendo trabalhar juntos com os engenheiros da empresa e criar. Aqui no Brasil, a gente tem parceria com algumas grandes instituições, como o [Hospital Israelita Albert] Einstein, o Sírio-Libanês, e o HC [Hospital das Clínicas]. Trabalhamos bastante com eles, fizemos alguns hackathons, reuniões a quatro mãos. Acho que tem muito ainda para a gente fazer. Preciso confessar que durante a pandemia a gente acabou olhando para outros lados, mas, globalmente, a GE tem feito bastante coisas – e a gente tem seguido aqui esse ritmo.

    Pessoalmente, você tem familiaridade com o ecossistema?
    Tenho porque eu, Nelson, tive a minha própria startup, uma empresa que chama AzimuteMed, que abri com minha irmã. Vendi a minha parte na Azimute há algum tempo, e hoje eu sou membro do conselho. Ela é uma empresa de suporte ao paciente e de suporte ao diagnóstico. Apesar de ter acontecido há sete anos, gosto de estar nesse mundo de startups. Vejo hoje vários dos nossos clientes fazerem muito bem isso [a conexão com o ecossistema], como o Fleury, o Einstein. 

    Como foi a experiência de empreender no Brasil?
    Foi uma grande loucura. Minha irmã é enfermeira, e é dela a visão de criar uma empresa para dar suporte ao paciente, principalmente na área farmacêutica. E então pudemos ampliar isso para a parte de planos de saúde. A empresa cresceu mais na área farmacêutica, hoje ela tem médio porte. No começo foi bem difícil porque nosso mercado de saúde é muito fechado. Para nós, algumas grandes empresas deram chance porque tínhamos de verdade uma boa ideia. E a gente tinha um piloto que deu certo. Se eu fosse fazer de novo, eu focaria mais no piloto e menos na retórica

    E como você entrou para o setor de saúde? 
    Foi sem querer. Me formei em engenharia e vim trabalhar na GE, foi meu primeiro emprego depois dos estágios. E eu e minha irmã tínhamos um amigo que foi um dos fundadores da Qualicorp. Crescemos todos juntos, cantando no coral da Igreja Batista. Adultos,  a gente se encontrava eventualmente. Até que um dia falamos: poxa, nós três trabalhamos na saúde, não é possível que a gente não vá fazer um negócio juntos. E a minha irmã teve a ideia e nós resolvemos entrar. 

    O que aconteceu na saúde durante a pandemia que agora não volta mais a ser como era?
    Acho que, antes de qualquer coisa, a conscientização. Todo mundo pensa em saúde hoje, desde o jornalista, até o minerador, o motorista de ônibus. E talvez saúde seja o maior bem que cada um de nós tem. O que adianta ter uma conta bancária enorme se não tem saúde? Isso é algo que veio para ficar, pelo nas duas próximas gerações. 

    Então de um lado é o awareness. E, de outro, as soluções digitais: conectividade e capacidade de inovação através do digital. 

    A inovação, claro, não precisa ser só digital. Mas é que hoje eu penso muito digital, porque, veja: a gente está conversando de maneira digital [a entrevista foi por videoconferência]. E estou muito imerso nessa capacidade. A GE tem uma plataforma chamada Edison [Edison Datalogue Connect, a EDC]. E várias outras empresas, inclusive alguns concorrentes nossos, plugaram suas soluções digitais através dela. 

    Desenvolvedores e inovadores do Brasil e do mundo inteiro, hoje, criam soluções que não precisam ser focadas só em diagnóstico por imagem, mas, principalmente na nossa área de atuação, criam soluções através do Edison.

    O Edison era desse tamanhinho quando começou a pandemia [faz um sinal de pequeno], e hoje ele não cabe aqui na minha telinha para você ver. Ele está enorme. Nossa capacidade de inovar, no nosso caso através da nossa plataforma Edison, é um dos legados que segue.

    E você, anda surfando para espairecer?
    Estou sim. Meu nível de surfe vinha caindo. Todo ano ele estava pior que no ano anterior. Mas, como vim para a casa de praia na pandemia, meu surfe melhorou. Eu treinei. Tenho curtido, é a minha válvula de escape.

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