Quase metade da força de trabalho no país é composta por mulheres. No entanto, essa situação não se reflete nas posições de liderança. Os chefes das empresas ainda são, na maioria, homens.
Mas o Dia Internacional da Mulher, celebrado hoje, traz consigo uma boa notícia: um estudo divulgado há alguns dias pela Page Executive, unidade de negócio do PageGroup especializada em recrutamento e seleção de executivos para alta direção, aponta que o número de mulheres no chamado C-level está crescendo.
O levantamento da consultoria mostra que a presença feminina nas cadeiras da direção das empresas cresceu 20% em 2020 – saltando de 30% em 2019 para 37% no ano passado.
A Page Executive também identificou os segmentos com maior participação feminina. E trouxe outra boa notícia para o setor de saúde: as farmacêuticas estão lá, ao lado do varejo, cosméticos e bens de consumo.
Especialistas afirmam que, para que haja de fato equidade de gênero nas posições mais altas, a empresa tem que criar programas com envolvimento direto das lideranças – o que inclui metas e cobrança.
Nesse sentido, um dos exemplos de maior sucesso no país é o da P&G, que tem 5 bilhões de consumidores no mundo e é dona de marcas como Gillette, Pantene, Pampers, Always, Head&Shoulders, Vick e OralB, entre várias outras.
Na P&G, que tem a operação no Brasil comandada por uma mulher, Juliana Azevedo, metade dos cargos gerenciais é ocupada por lideranças femininas. As operações nacionais contam com 40% de presença delas.
Mas isso não é de hoje. Em 1884 a companhia americana já começou a desafiar o preconceito de gênero ao contratar mulheres em sua fábrica de sabonetes. As mulheres começaram a ser empregadas em técnicas nos idos de 1890 e, 1987, a P&G efetivou a primeira mulher gerente de fábrica.
Segundo Thatyana Souza, gerente sênior de RH da P&G Brasil, a companhia tem ações intencionais na busca da equidade. São metas de contratação, benefícios e auxílios que possibilitam igualdade na criação de filhos (como a licença-paternidade), e pilares de apoio aos colaboradores, que oferecem treinamentos, atividades e mentorias. É sobre essas políticas que ela conta nesta entrevista a Future Health.
De forma geral, há poucas mulheres em posições de comando no Brasil. Por que a P&G é um ponto fora da curva?
Sou gerente sênior de Talent. Na área, olhamos para atração, recrutamento e desenvolvimento. Também sou a líder de Equality and Inclusion [equidade e inclusão] para o Brasil, então posso dar duas perspectivas diferentes. Quando recrutamos, diversidade e equidade é algo que buscamos desde a base. Nossa presidente hoje, a Juliana, começou como estagiária aqui. Contratamos os nossos gerentes, os nossos líderes e os nossos CEOs como estagiários. Desde cedo estamos nas universidades para que eles venham trabalhar com a gente, para fazermos todo aquele encantamento.
Para contratação de estágio e gerentes, tenho uma meta que está no meu plano de trabalho, no da minha chefe, no de todo mundo de RH: entregar contratação 50/50, 50% de mulheres e 50% de homens.
A grande maioria dos nossos gerentes vêm do nível de estágio. E temos também a meta de manter talentos. Para isso, temos revisões, chamadas de Talent Review ou Talent Council, que é quando os gerentes de cada área avaliam os colaboradores para, entre outras coisas, verificar se os salários estão equilibrados, como está a carreira da pessoa, perspectivas etc.
Uma dessas métricas é a chamada Female Representation. Todo mundo está sempre olhando como que está a distribuição de mulheres na liderança – inclusive a própria presidente.
Quando eu fiz a minha primeira revisão, fiquei realmente impressionada porque a Juliana perguntou de fato: “Quero falar sobre Female Representation. Como estamos?”. Pensei: sempre ouvi falar do envolvimento da liderança, e agora vejo que é real. Outra coisa que garantimos é que sempre haja pelo menos um homem e uma mulher competindo para a mesma posição. São vários os esforços que a gente faz para garantir os 50% no final. E estamos muito felizes em dizer que hoje temos 50% de mulheres nos nossos cargos gerenciais.
O que faz diferença é isso, então? É ter um programa efetivo, com cobrança da alta liderança?
Difícil falar pelos outros. Mas o que aprendi aqui nessa linha, especialmente, de Equality and Inclusion, até com outras jornadas que estamos envolvidos, não apenas de gênero, é que, uma vez que você tem toda a liderança envolvida, as coisas mudam. Esse é um fator que faz toda a diferença.
Não falta vontade das mulheres, o que falta é oportunidade?
Sem dúvida. É muito mais uma questão de oportunidade do que de vontade. De garantir isso, de ter conversas abertas. A mulher que vai ser mãe tem medo de avisar os chefes. O ambiente precisa ser muito aberto para falar disso com naturalidade. Deixar claro que a carreira dela vai ser trabalhada da mesma forma.
Vocês lançaram a licença parental recentemente, em que o pai pode tirar 8 semanas quando nasce seu filho. Qual o objetivo?
Me orgulho muito disso. Nossa VP global de RH, a Shelly McNamara, é Chief Equality & Inclusion Officer. Isso quer dizer que ela é a cabeça de Equality and Inclusion na P&G.
E ela fala muito que, para garantirmos essa equidade no trabalho, temos que também garantir essa equidade em casa. Então nada mais justo do que oferecer os mesmos benefícios para todos.
Assim, isso não é mais uma conversa só de mulheres, é uma conversa de todos os pais, independentemente do gênero, de orientação sexual.
Como está a aceitação dessa licença?
Estamos tendo os primeiros casos agora. Em março temos a nossa Semana Global de Equality and Inclusion em que podemos participar de eventos globais, regionais e também temos uma agenda local. E vamos trazer um pai que acabou de tirar licença paternidade para que ele conte a experiência dele. A porta está aberta para não ser só mulheres falando sobre isso. É muito importante começar a ouvir de homens como o projeto fez diferença na vida deles.
Como trazer os homens para esse debate?
Algo que, para mim, mudou o cenário no Brasil é o MARC, Men Advocating for Real Changing. É um workshop externo, não foi a P&G que desenvolveu, e sim uma empresa chamada Catalyst. Começamos a trabalhar com ele uns três anos atrás. O workshop foi desenvolvido para líderes e é um programa vivencial, não é um treinamento – reconhecemos que ele é uma caminhada.
O programa traz a questão de como se colocar no lugar do outro, e isso mostra aos homens coisas que eles não percebiam, como os privilégios que eles têm.
A P&G do mundo todo faz essa experiência, que conta com rodas de conversa. Teve uma das dinâmicas que me marcou muito. Fizemos uma roda de homens que passava por dentro de uma roda das mulheres. Eles começavam então a ler statements criados por mulheres. Algo assim: “Eu nunca precisei me preocupar com a minha segurança ao viajar sozinho” ou “Eu nunca saio de algum lugar à noite já com a chave do carro na mão para entrar rápido”, “Eu nunca tive dificuldade em encontrar mentores do mesmo gênero que eu”. São coisas que eles nunca pararam para pensar na vida, mas coisas que a gente sofre ou sente todos os dias. E ali vira uma chavinha do homem. Ele pensa: nossa, realmente eu tenho que fazer algo sobre isso.
A ideia do workshop é que, para a equidade de gênero acontecer e para a situação que vivemos hoje mudar, não basta só as mulheres discutirem.
Os homens também precisam falar sobre que tipo de atitude devem ter. Desde a questão que eles nunca notam que é do mansplaining [sempre que um homem explica algo para uma mulher supondo que ela não sabe aquilo por ser mulher] e manterrupting [interrupções que o homem faz durante a fala de uma mulher impedindo sua linha de raciocínio]. Quanto você ajuda ou atrapalha nessas situações? Que tipo de atitudes você pode ter para mudar o hoje? Claro: é um caminho, é uma jornada, mas é muito legal ver.
Há dois anos, essa semana de Equality and Inclusion trazia muitas mulheres falando sobre mulheres. E ficava só nesse “girls’ talk”.
Na última edição da E&I Week já trouxemos mais homens. Incluímos ele na conversa. É preciso fazer isso.
Que diferença faz ter uma mulher como presidente na corporação?
A Juliana é a primeira presidente mulher aqui no Brasil. E cada vez mais a gente ouve falar em representatividade e o quanto isso é importante. Para nós, colaboradoras, é uma inspiração.
Tem aquilo de: a Ju conseguiu, eu também consigo. Eu acredito que posso chegar lá.
Isso é muito importante. E tem ainda outra questão: por ela ser mulher, acredito que ela ajuda muito em sempre trazer esse tópico para o debate.
Quais as ações da P&G que você acha que são as mais efetivas para a questão da diversidade?
Eu dividiria em algumas categorias. Uma delas é recrutamento, para sempre termos a base e sempre termos pipeline para futuras posições. Em recrutamento tem aquela questão de ter targets e métricas definidas. Outro ponto é a gestão de manutenção dos talentos, que garantem que, sempre que exista uma chance de promoção, haja um homem e uma mulher prontos para disputarem. Depois disso escolhe-se quem tem o melhor fit – e pode não ser a mulher, tudo bem. Mas garantimos que estamos olhando para ela e que ela foi avaliada. Outra ação que acho importante destacar é a cultura de trazermos o tema para ser debatido. Temos essas semanas, temos rodas de bate-papo.
E temos pilares dentro da empresa – de gênero, de PCD, de raça, gable [gay, aliados, bissexual, lésbicas e transgêneros] – dentro dos departamentos ou áreas, como finanças, RH etc.
Sob cada um dos pilares tem um grupo de afinidade. E cada grupo de afinidade tem um líder e um sponsor executivo. Todo ano fiscal, definimos quais são as nossas prioridades, o que queremos entregar e, depois, os resultados do que fizemos.
A pandemia afetou mais fortemente as mulheres, sobre quem recai a maior parte do trabalho doméstico. Elas acumularam mais funções com as escolas fechadas e os filhos em casa. A P&G prestou atenção a isso?
Sim. A mensagem que tratamos de dar foi que cada gerente estivesse muito junto das suas colaboradoras e as entendessem. Eles tinham conversas para saber como essas mulheres estavam, que tipo de ajuda precisavam. Porque sabemos que cada caso é um caso, então as soluções também tinham que ser únicas. Encorajamos essas conversas para entender as necessidades de cada mulher e, assim, podermos endereçá-las.
O que nós, consumidores, podemos fazer para garantir que as empresas tenham políticas de equidade de gênero?
Os consumidores já estão se movimentando. Hoje, qualquer coisa que vira notícia, as pessoas marcam nas redes sociais o arroba da empresa e pedem posicionamento. Tem aquela história de que não cabe mais só ao governo fazer determinados tipos de ações, as empresas também têm que engajar na causa.
Por isso nossa nova estratégia de Equality and Inclusion, globalmente, envolve quatro vetores: empregados, marcas, comunidades e parceiros.
O “comunidades” está aí porque temos um papel importante em relação a elas, no que comunicamos, como trabalhamos a representatividade. Então, respondendo: já existe esse movimento e acho que só vai crescer. E as empresas precisam estar engajadas nisso. Cada vez vez mais o consumidor está atento não só ao que você fala, mas àquilo que você faz. Não adianta fazer um post bonitinho no Dia Internacional da Mulher. Os consumidores reviram sua história e cobram.
Fique por dentro das melhores histórias de inovação em saúde! Assine nossa newsletter